Procura-se terceiro lugar: Como estamos perdendo ambientes de socialização
Uma análise sobre a necessidade de espaços de socialização na nossa vida
Semana passada falei sobre como as interações sociais são essenciais para a saúde mental, especialmente de pessoas que lutam contra a dependência química (leia aqui) e quero continuar nessa temática, mas com outro tópico em particular. Por isso, comecemos com um questionamento simples: para onde você vai além de Casa-Trabalho?
Vivemos numa época em que ter uma casa é bem difícil e estima-se que 20,2% da população viva em imóveis alugados. Segundo uma pesquisa do Instituto Ipsos, os brasileiros têm 74% do do seu tempo de vida todo ocupado, um equivalente a 43 anos considerando a expectativa de vida nacional. Isso é relevante pois esses ambientes representam grande parte das nossas vidas, não apenas do ponto de vista quantitativo, mas por o quanto nós investimos nosso esforço e nosso tempo. Nós seres humanos ocupamos espaços, mas espaços também nos ocupam. Nossa sociedade é formada por espaços de convívio desde o momento em que percebemos a necessidade de formar comunidades para sobreviver e esses espaços foram se desenvolvendo juntamente com as dinâmicas sociais, se padronizando e adaptando a cultura e as normas de cada civilização até os dias de hoje. O primeiro lugar de convívio é a nossa casa/morada/residência, pois é o ambiente onde primariamente as relações são familiares e as dinâmicas são mediadas pelos conceitos de parentalidade, seja ela sanguínea ou não, abrangendo aspectos físicos, emocionais, sociais e intelectuais. O segundo lugar seria o trabalho,nesse contexto é muito mais ligado a atribuição social que o individuo exerce naquela sociedade, é o ambiente em que ele atua com o objetivo de produzir ou prestar serviço, mas também está ligado a qualquer atividade considerada ‘‘útil” para a sociedade. Por essa razão, podemos dizer que crianças na escola estão em seu ‘‘trabalho’’ pois em dado momento concordamos como sociedade que crianças estarem na escola era importante, uma vez que na escola elas realizam sua função social tanto quanto qualquer profissional (o mesmo vale para universitários).
Mas para o sociólogo americano Ray Oldenburg tem algo a mais, pois segundo ele, nós como sociedade criamos conjunto de espaços privados ou públicos em que encontramos pessoas com os quais não necessariamente temos vínculos familiares e laborais. A esses espaços ele chamou de: terceiro lugar. Esses são locais onde as pessoas se reúnem para socializar, relaxar ou se envolver em atividades de lazer, sendo essenciais para a criação de um senso de comunidade. Seu diferencial está na possibilidade que ele dá para que as pessoas possam se conectar entre si, com situações desconhecidas ou imprevisíveis, ou ainda, unidas por interesses ou atividades compartilhadas, permitindo conexões e promovendo amizades e companheirismos. Por isso, os “terceiros lugares” são muito importantes para nossa saúde mental. Pesquisadores da universidade de Chicago descobriram que pessoas que frequentam ‘‘terceiros lugares’’ com frequência têm menos chances de se sentirem solitárias do que aquelas que não o fazem. Isso é muito relevante pois já se sabe que a solidão, ou o sentimento de solidão, pode ser um fator de risco para várias doenças mentais. Já um estudo da Universidade de Oxford verificou que as pessoas que frequentavam mais os ‘‘terceiros lugares’’ tendiam a ter mais amizades e relações maiores e mais diversificadas, em contraste com aquelas que não iam, mostrando que frequentar ‘‘terceiros lugares’’ regularmente aumenta as chances de conhecer pessoas com interesses em comum, criando novas amizades e fortalecendo laços sociais. E se não fosse o bastante, um estudo de 2022 feito com estudantes universitários, publicado na revista Preventive Medicine, descobriu que pessoas que frequentam ‘‘terceiros lugares’’ relatam níveis mais baixos de estresse e maior satisfação com a vida, ou seja, pode reduzir o estresse, a ansiedade e a depressão, além de promover o bem-estar mental e físico em contraste daqueles que não o fazem.
Com isso em mente eu te pergunto: Você tem um Terceiro Lugar? Se tiver dificuldades de responder ou mesmo não souber, saiba que não é só você, os terceiros lugares estão se dissolvendo do nosso cotidiano por múltiplos fatores, mas eu acho que podemos começar pelas redes sociais. Quando a internet se popularizou e o conceito de aldeia global1 falhou pois, não criamos uma coletividade virtual, na verdade as redes sociais produziram uma nova onda de individualismo. O celular geralmente promove muito mais um afastamento com as pessoas fora das redes incentivando as relações mediadas por redes sociais. Antes de prosseguir eu quero deixar claro que isso não intrinsecamente ruim, na verdade seria muito fácil simplesmente colocar toda culpa na tecnologia, ignorando os benefícios e as potencialidades dessas ferramentas, o ponto aqui é muito mais destacar o mau uso e a má relação que estamos desenvolvendo com essas tecnologias e destacar que isso não uma falha da nossa sociedade ou um efeito colateral irremediável dessas tecnologias, isso é uma estratégia de mercado que visa o lucro em detrimento da qualidade de vida das pessoas.
Os algoritmos são desenvolvidos para que você passe o maior tempo possível nas redes sociais e isso não novidade para ninguém. E já existia uma tendência das pessoas priorizarem redes sociais em detrimento de outras formas de lazer, mas como muitas coisas atualmente, tudo mudou depois da Pandemia. O lockdown nos expôs de maneira abrupta às telas de uma forma sem precedentes em nossa história. Estávamos diante de uma crise sanitária que resultou em crises políticas, econômicas e sociais. Com isso a própria dicotomia entre casa e trabalho se tornou turva, pois com o home office sua casa também era seu trabalho. Temos também as culturas de empresas que insistem em transforma o seu emprego em seu lar, como se relações profissionais precisassem agora se tornar familiares, mas que muitas vezes mascaram relações abusivas e tóxicas no ambiente de trabalho. Dessa forma, o uso de redes sociais se tornou abusivo e o conceito de cronicamente online está mais fixo em nosso imaginário do que nunca, pois as redes socias agora mediam a vida fora delas. Sob o pretexto da interatividade e do instagramavel o lazer está se tornando cada vez mais digital e cada vez mais individual. Não há mais espaços para ambientes de socialização, exceto se ele for dentro das próprias redes sociais, a interação humana está ficando limitada aos caracteres, chats e feeds. Mas isso acontece por sermos preguiçosos? Com trabalhos cada vez mais exaustivos e a onipresença das telas e algoritmos construídos meticulosamente para roubar a atenção, o resultado é cada vez mais pessoas usando os celulares em seu tempo livre, pois é literalmente mais fácil. Não é questão de vício em dopamina (que aliás não existe leia mais sobre aqui) é o fruto do esforço das Big Techs de nos fazer passar o maior tempo possível nas redes para sermos expostos a publicidade e consumo excessivo e nesse cenário, as pessoas estão se afastando cada vez mais de ambientes de socialização e lazer, não por eles serem ruins mas por não serem acessíveis financeiramente ou por estarem sumindo.
Quando falo ambientes de socialização o que vem em sua mente? Ray Oldenburg normalmente citava cafés, clubes, bibliotecas, parques, livrarias, igrejas e praças, mas agora é possível pensar nesses espaços como disponíveis a todos? Em certa medida, esses espaços estão ligados ao consumo, pois ou você paga para estar lá ou precisa consumir alguma coisa no local para fazer sentido estar nele. De certa forma o lazer está sendo cooptado pela cultura da produtividade moderna, uma vez que seu lazer não é válido, especialmente se você for pobre, e o lazer correto é aquele que te trás um benefício, uma utilidade que te torna mais produtivo, uma extensão da lógica de alto rendimento para mais uma área da nossa vida.
Pense em como as redes sociais funcionam como shoppings: alta exposição publicitária, fabricação de desejo e apelo ao consumismo. Mas nem precisamos nos deslocar até ele pois agora esse shopping está em nossas mãos e em qualquer lugar. Não é absurdo dizer que as redes sociais nos consomem diariamente e mesmo que se promovam como ambientes de interação, nunca estivemos tão sozinhos. Se questione qual foi a última vez que você fez seu passatempo favorito em um lugar que gosta? Você não tem obrigação nenhuma de estar lá, está porque gosta. Você tem a chance de conversar com outras pessoas, aproveitar o momento e até fazer amizades ou simplesmente rever amigos que já tem. Consegue lembra quando foi isso? Dá sensação de bem estar que isso lhe causou? Essa é a beleza do terceiro lugar, algo que estamos perdendo aos poucos por causa do individualismo solitário que vem das mídias sociais parasitárias. Estamos ficando muito mal acostumados com a conveniência que elas nos trazem e estamos nos satisfazendo de maneira pobre simplesmente por ser mais fácil. Obviamente não é todo mundo que conseguiria se engajar em um passatempo, pois lazer realmente está se tornando um luxo. Com a escala 6x1, a uberização do trabalho, o custo de vida ficando cada vez mais alto, quem tem tempo para lazer de qualidade? Para que serve desaprovar os hábitos de uma pessoa que só tem seu celular como uma maneira de fugir dessa rotina? Por isso defendo que esses múltiplos fatores não podem ser resolvidos apenas no âmbito individual, nem poderia, como uma demanda de falta de interação e conexão social entre as pessoas poderia ser resolvido com uma intervenção individualista? Certamente isso só é possível se construirmos essas soluções coletivamente, você e seu grupo.
Por isso gostaria de te incentivar a procurar os terceiros lugares. Possivelmente será preciso redescobrir e experimentar novos interesses e isso faz parte do processo. Talvez seja até necessário reinventar ou construir um (esse construir não é literalmente com tijolos e cimento, mas se tiver afim vai nessa), e por isso é fundamental ter paciência, pois não dá para forçar conexão com um lugar ou com as pessoas. E o mais importante: não faça isso sozinho. A magia dos terceiros lugares está nas conexões formadas por seus frequentadores e na potencialidade que é criada por meio dele. Ele não precisa ser ‘‘útil’’ ele precisa te fazer bem. Essas ideias para buscar novos lugares que eu trouxe são generalistas e um tanto quanto simplórias, mas elas estão aqui como uma base que podem te ajudar na procura de soluções que serão construídas por você e seu grupo. Quem alcança uma existência mais agradável e rica do ponto de vista pessoal, afetivo, social, familiar e cultural, não necessariamente tem um terceiro lugar mas, com um, com certeza fica bem mais fácil chegar lá.
Você tem ou já teve um Terceiro Lugar?
Leia também:
A Farsa do vício em dopamina
Vício em dopamina se tornou um termo muito popular nas redes sociais, e não é raro encontrar essa expressão em vídeos curtos, especialmente ligados a temas de saúde mental onde perfis estão ensinando a ”resetar” seu sistema dopaminérgico com um ”detox” de dopamina que promete maximizar sua performance prometendo alta produtividade, aumentar o desempenho…
A Substância, o Parque dos ratos e as drogas
Quando assisti A Substância um detalhe me chamou a atenção. O sucesso desse filme permitiu inúmeras leituras, interpretações e mensagens possíveis, mas eu quero usar uma detalhe específico para exemplificar um tema muito discutido na temática da saúde mental.
Incels e o que não te contaram sobre (eles não são quem você pensa)
Antes de tudo, eu não tenho aqui o menor interesse em defender ou naturalizar discursos violentos e reacionários. Essa é uma tentativa de complementar o debate e tentar adicionar a ele uma perspectiva que é pouco - ou nada - discutida.
Referências
Oldenburg, R. (1989). The Great Good Place: Cafés, Coffee shops, Bookstores, Bars, Hair Salons, and Other Hangouts at the Heart of a Community. Da Capo Press.
Waldinger, R. In: Curtin, M. This 75-year Harvard study found the 1secret to leading a fulfilling life. Inc.; 27 fev. 2017.
Conceito que descreve um mundo onde as pessoas e culturas estão interconectadas por meio da tecnologia e da comunicação, tornando-se como uma única comunidade, apesar das distâncias geográficas. A aldeia global implica que as pessoas e as culturas estão cada vez mais interligadas e dependentes umas das outras em termos econômicos, sociais e culturais.
belo trabalho, amei.
Parando para pensar, eu quase não vou para lugares novos mesmo. Acho que o shopping é o único lugar que vem na minha mente.
Aqui em SP até tem parques, museus, teatros e outras áreas de lazer, mas querendo ou não acabamos nunca indo para lugar algum.
Acho que a vida adulta não ajuda muito pois todos os amigos trabalham, cada um tem um horário, pegam férias em momentos diferentes (ou nem pegam). Acabamos sempre nos desencontrando.
É nessas horas que aquela PEC contra a escala 6x1 cairia bem. Teríamos pelo menos mais um dia de lazer, para quem sabe sair com os amigos 👀