A Farsa do vício em dopamina
Como influencers se apropriaram do vocabulário da neurociência para ganhar dinheiro as custas da sua saúde mental
Vício em dopamina se tornou um termo muito popular nas redes sociais, e não é raro encontrar essa expressão em vídeos curtos, especialmente ligados a temas de saúde mental onde perfis estão ensinando a ”resetar” seu sistema dopaminérgico com um ”detox” de dopamina que promete maximizar sua performance prometendo alta produtividade, aumentar o desempenho do raciocínio e da memória, combater depressão, ansiedade, qualidade de sono, melhorar sua alimentação, adicções e compulsões diversas, melhorar o desempenho sexual, atingir a felicidade ou estabelecer contato direto com Deus e, geralmente, é relacionado ao uso desmedido de telas e redes sociais, construindo um discurso onde a dopamina é uma vilã interna a ser domada. Contudo, na base dessas afirmações estão falácias argumentativas, um mau entendimento sobre a dopamina e convêm a interesses financeiros individuais que buscam explorar uma inadequação moderna, má relação com tecnologia e demanda por produtividade com a farsa do vício em dopamina.
Ulisses e as Sereias, por John William Waterhouse 1891. Este é você cercado de coachs…
Esse foco na dopamina é muito atual e está alinhado com descobertas recentes sobre seu papel na fisiologia e comportamento humano. Pouco tempo atrás, acreditava-se que a dopamina era o neurotransmissor do prazer, uma molécula da felicidade, porém com novas pesquisas descobriram que ela está envolvida na motivação, na recompensa e no controle motor sobre o movimento voluntário. Em outras palavras, a dopamina é a molécula por trás do nosso ânimo e impulso para realizar atividades que nos estimulem e nos motivem as realizá-las mais vezes, atuando em uma série de estruturas e compondo variados processos bioquímicos que são as vias dopaminérgicas e sistema de recompensa do cérebro. Por essa razão, a dopamina está muito relacionada a vícios e comportamentos compulsivos e aqui mora um dos primeiros erros do discurso do vício em dopamina. Via de regra, todo o vício é uma desregulação do sistema dopaminérgico que reforça a repetição de comportamentos buscando uma satisfação, porém não podemos resumir as adicções à fisiologia, os vícios tem fatores cognitivos e sociais não podendo ser simplificados ou ser de total responsabilidade da dopamina. Quando um indivíduo sofre vício ou uma compulsão é necessário levar em consideração inúmeros fatores como: histórico familiar, contexto sociocultural, ambiente, fatores emocionais e subjetividades. Todos esses aspectos constroem um cenário muito particular e tem relevância para o enfrentamento da demanda e tais fatores geralmente pesam muito mais do que a dopamina em si. Por essa razão, não se trata alcoolistas como viciados em dopamina, por essa razão, as intervenções para dependentes químicos e jogos de azar são diferentes, se tudo se resumisse a dopamina o método de intervenção de um valeria para qualquer outro.
“os vícios tem fatores cognitivos e sociais não podendo ser simplificados ou ser de total responsabilidade da dopamina.“
Como consequência, a dopamina em muitos casos é tratada com um vilã interna que está te sabotando, e você deveria seguir essas dicas para ”resetar seus níveis de dopamina” e esse detox deveria ser obrigatório para todos. Primeiramente que dopamina não é boa nem má, e seu papel enquanto neurotransmissor é complexo pois está em interação constante com as mais variadas estruturas e sistemas do corpo, desempenhando em cada uma delas diferentes funções. Sua produção é complexa e seu comportamento no corpo não é uniforme, dependendo de sua localização no corpo, haverá discrepâncias entre os níveis de dopamina que serão aceitáveis. A grosso modo distúrbios dopaminérgicos estão mais relacionados a transtornos mentais e degenerativos do que a hábitos e vícios. Obviamente uma coisa não exclui a outra, se por um acaso você diminuísse de fato seus níveis de dopamina é mais provável que você desenvolva a doença de Parkinson do que potencialize sua produtividade como certos influencers defendem. O déficit na dopamina está relacionado ao TDAH e a perda da capacidade de sentir prazer e motivação, o que pode levar a um quadro depressivo grave. Por outro lado uma alta produção de dopamina não significa que a pessoa vai passar horas nas redes sociais, mas pode muito bem começar a ter alucinações, delírios, psicose e outros sintomas maníacos comuns em quadros de esquizofrenia. Esse neurotransmissor tem vias de ação tão complexas que sua modulação, diferente do que muitos influencers dizem em seus perfis, não é sobre aumentar ou diminuir a quantidade total de dopamina no seu corpo, pois ela tem diferentes funções dependendo de onde ela está agindo, mas é sobre como manter seu corpo saudável para que ele possa regular sua produção.
Dessa maneira, esse termos são uma apropriação incorreta do vocabulário neurofisiológico para reforçar o discurso sobre o vício em dopamina que pode ser usado tanto para espalhar desinformação sensacionalista na internet, tanto para vender soluções baseadas ”no que diz a neurociência”.
“distúrbios dopaminérgicos estão mais relacionados a transtornos mentais e degenerativos do que a hábitos e vícios”
A má relação da sociedade com as redes sociais é o cerne dessa questão. A competição de empresas e plataformas digitais pela atenção dos usuários levou a um esforço literalmente industrial com investimentos bilionários com o objetivo de manter as pessoas on-line tanto quanto possível, incentivando o consumidor a estar sempre conectado. Entretanto, em vários nichos dentro dessas mesmas plataformas, o discurso da produtividade e da alta performance é cada vez mais reforçada, causando um sentimento forte de inadequação entre usuários que passam tempo demais na internet e sentem que isso afeta sua saúde, educação, trabalho, lazer e relacionamentos. Existem várias hipóteses para esse fenômeno social, as mais comuns podem ser a Nomofobia – que é o medo irracional de ficar sem o celular ou de não conseguir usá-lo, e é um transtorno que pode ser causado pelo uso excessivo de celulares e outras tecnologias digitais que pode ser potencializado pelo o sentimento de apreensão de que alguém não está a par ou está perdendo informações, eventos, experiências ou decisões que poderiam melhorar sua vida, compelindo a pessoa a manter-se conectada às redes sociais – ou, a escassez de opções de lazer, com a economia da atenção e empresas de tecnologia empenhados em tornar a vida cada vez mais online, redes e plataformas digitais deixaram de ser uma opção de lazer e se tornaram a principal ou única opção possível, especialmente entre populações de baixa renda, onde mesmo hobbies passam obrigatoriamente a ter uma função ou utilidade, principalmente por demandas cada vez maiores por alta performance, redes sociais passam a ser uma válvula de escape que, por causa de como os algoritmos dessas plataformas foram construídos a compulsividade pelas telas é estimulada com ciclos de recompensas frequentes e rápidos, se transforma em uma armadilha para atenção e preso nas redes.
“A má relação da sociedade com as redes sociais é o cerne dessa questão.”
Tirando proveito da situação, influencers, coachs e gurus digitais usufruem disso para ter engajamento e consequentemente ganhos financeiros, com pessoas que estão se sentindo cada vez mais desconfortáveis com seu próprio comportamento ou com o de pessoas próximas nas redes, e aqui o discurso do vício em dopamina é muito conveniente para quem quer lucrar com esse sentimento de inadequação, pois parece suficientemente científico e aplicável. esse verniz de validação da neurociência é ótimo para vendas, mas são métodos ineficazes pois por princípio são errados e muitos ainda são contraditórios, pois alguns seguem a premissa falsa de que mais dopamina é igual a mais felicidade, mais motivação e mais aprendizagem, enquanto outros podem dizer que altas doses de ‘dopamina barata’ no seu cérebro te mantêm preso no celular e são a causa da sua frustração, logo, o método/segredo do detox de dopamina dele é a chave para você ser diminuir sua sensibilidade à dopamina e, consequentemente, ser mais feliz. Com isso, estão vendendo uma solução estritamente individualista e incrivelmente ineficaz para um problema que, embora seja particular, também é muito coletivo. Imagine que uma pessoa sente que tem problemas com uso de redes sociais, então ela vê uma série de vídeos sobre vício em dopamina e como todos seus problemas estão relacionados a isso, e ela então segue as dicas do perfil e, por exemplo, desinstala suas redes sociais. Contudo, ela não levou em consideração que muitas daquelas dicas são extremamente generalistas e não plenamente aplicáveis a todos pois, por muitas vezes, ela não tem outras opções de lazer fora da internet uma vez que seu celular ainda é sua opção de passatempo, logo ela criou uma meta que é muito distante do que pode realizar e depois de alguns dias volta a instalar os aplicativos, porém com uma carga a mais: o sentimento de frustração e fracasso consigo mesma.
“esse verniz de validação da neurociência é ótimo para vendas, mas são métodos ineficazes pois por princípio são errados e muitos ainda são contraditórios”
Segundo o filósofo e ensaísta de tradição alemã Byung-Chul Han, em seu texto ‘A violência neuronal’, o começo do século XXI é definido como neuronal. Doenças como Depressão, Transtorno de Déficit de Atenção com Síndrome de Hiperatividade (TDAH) ou a Síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem patológica do começo do século XXI. Ele usa o termo -violência neuronal- para descrever como a pressão por produtividade, desempenho e auto otimização nos leva a uma auto exploração constante que é alimentada por um sistema que nos incentiva a sermos sempre “ativos”, “eficientes” e “bem-sucedidos”, muitas vezes às custas de nossa saúde mental e física, nos levando a um estágio de positividade tóxica que nos impede de reconhecer e lidar com nossos próprios limites e problemas. Nesse contexto a tecnologia e a hiper conectividade desempenham um papel importante pois nas redes sociais, por exemplo, nos incentivam a estarmos sempre disponíveis e a compartilharmos nossas conquistas, o que leva a uma comparação constante e a um sentimento de inadequação, e esse sentimento pode ser rearranjado e capitalizado Assim, os discursos de autoajuda ganham um verniz neurocientífico e se transformam conselhos para moldar indivíduos de alta performance.
“a pressão por produtividade, desempenho e auto otimização nos leva a uma auto exploração constante que é alimentada por um sistema que nos incentiva a sermos sempre ativos, eficientes e bem-sucedidos, muitas vezes às custas de nossa saúde mental”
Em suma, é importante ressaltarmos que nosso corpo naturalmente já regula a dopamina e ter um estilo de vida saudável, com boa alimentação, exercício físico e sono de qualidade já é o básico para mantê-la equilibrada no nosso organismo. Se você de fato tem algum problema com o uso de redes sociais ou alguma desregulação dopaminérgica, não será um detox de dopamina que você viu em rede social que vai te ajudar, pois cada caso é um caso. Buscar ajuda profissional é essencial até para evitar malefícios e efeitos adversos que podem ser consequências de métodos difundidos online. Por isso é importante manter uma posição crítica em relação a conteúdos na internet, pois se você consegue identificar que tem problemas com celular ou redes sociais, já é um passo importante, e é de suma importância procurar apoio profissional para lidar com isso, mas se você não puder, busque se informar com profissionais que produzam conteúdos sobre esse assunto de maneira responsável, sem apelar para sensacionalismos. Saiba que a melhor maneira de lidar com essa demanda é em conjunto como uma espécie de rede de apoio, como um amigo que também sente que usa muito as redes sociais, por exemplo. Explore bons conteúdos e hábitos mantendo uma rotina saudável e não se deixe mais levar por esse discurso, seja por influência de algoritmos, seja por questões morais, pois a dopamina não é sua aliada, tampouco sua inimiga, errados são aqueles que usam de má fé a ciência para tirar o seu tempo e dinheiro.
habla mesmo, Josué! sou psi e vi que vc é estudante da área tbm. daqui da clínica penamos legal pra fazer a via contrária de tanta (des)informação caótica
muito bom, extremamente necessário!!