Incels e o que não te contaram sobre (eles não são quem você pensa)
Como uma generalização apressada sobre uma condição de vida invisibilizou todo um grupo de pessoas
Antes de tudo, eu não tenho aqui o menor interesse em defender ou naturalizar discursos violentos e reacionários. Essa é uma tentativa de complementar o debate e tentar adicionar a ele uma perspectiva que é pouco - ou nada - discutida.
Lá pelo ano de 1993 uma jovem canadense criou um site para pessoas que tinham dificuldades de se relacionar e consideravam ter vidas sociais fracassadas por não conseguirem ter relações sexuais apesar de quererem muito. Logo o termo incel foi criado e a comunidade era para qualquer um de qualquer gênero que estivesse sozinho, nunca tivesse tido relações sexuais ou que não tivesse um relacionamento há muito tempo. Mas então três décadas, centenas de fóruns, podcasts, livros e chacinas depois, o que era apenas um site deu origem a uma comunidade virtual conhecida por sua violência, misoginia, ressentimento, autopiedade, misantropia, extremismo e - não menos importante - um perfil. A imagem do incel é masculina, branca e jovem, e isso já é um problema por si só uma vez que o termo e a comunidade foram apropriados por grupos de homens brancos e jovens que frequentemente desabafavam suas frustações sexuais online. Entretanto, essa apropriação e posterior popularização do termo, ligada a esse perfil especifico de pessoa, levou a uma invisibilização de toda uma variedade de pessoas que são afetadas pelo fenômeno do celibato involuntário e não se parecem com o que se convencionou a chamar de incel.
Primeiramente, em nossa sociedade damos muito valor ao sexo. Ele pode ser visto como um rito de passagem, uma afirmação de gênero, uma dinâmica de poder ou está sempre sendo referenciado culturalmente, seja em músicas, produções audiovisuais, literaturas e qualquer forma de arte, poucas coisas na sociedade são tão valorizadas e ao mesmo tempo consideradas um tabu quanto é o sexo. Na psicologia (aqui daremos destaque à popularidade da psicanálise quando se trata do assunto) também defende como a sexualidade é importante para uma saúde mental e como sexo pode ser até mesmo uma necessidade inata dada nossa biologia (embora isso não seja verdade para todos), e por isso existe uma pressão pessoal e social para fazermos sexo. Mas como quase tudo na sociedade, aqui também existe uma série de desigualdades que tornam isso mais difícil para determinadas pessoas. Aqui podemos dar o exemplo de pessoas que possuem ansiedade social ou agorafobia, condições essas que impactam diretamente a qualidade de vida dos indivíduos, afetando diretamente sua capacidade de se relacionar com outras pessoas, e consequentemente incapazes de se relacionar com o sexo oposto, mas não necessariamente porque eles não querem. E não precisamos relacionar somente com quadros psiquiátricos: existem pessoas que são muito tímidas e por isso não desenvolveram suas habilidades sociais, e por possuírem uma personalidade muito mais introspectiva e/ou sofrerem com uma baixa autoestima, antes de tudo, ser incel se torna uma condição de vida.
Pessoas com bipolaridade, esquizofrenia ou demais quadros psiquiátricos, que já sofrem com o estigma social da 'doença mental', tendo dificuldade em expressar sua sexualidade, especialmente quando são jovens. Por exemplo, os pais de pessoas com Síndrome de Down tratam os filhos num padrão infantil de comportamento, pois temem assumir as consequências de um relacionamento sexual que possa resultar numa gravidez com risco de reincidência da Síndrome e profissionais sentem-se despreparados para orientá-los sexualmente e harmonizar as atitudes dos pais aos desejos sexuais dos filhos. O medo de ser desprezado por causa de uma condição genética ou de saúde mental leva a uma repressão do individuo, que passa a nutrir uma aversão por si próprio, subestimando-se em sua capacidade de ser bem sucedido em estabelecer uma relação satisfatória com alguém, e se mesmo para pessoas neurotípicas falar sobre sua vida sexual, ou a falta dela, já é um tabu, imagine para indivíduos nessas condições. Pesquisas recentes têm chamado a atenção para a prevalência de autismo autorrelatado em comunidades online de celibatários involuntários (incels). Esses estudos sugerem que alguns indivíduos com autismo podem ser particularmente vulneráveis ao impacto de fóruns incel e à desesperança que eles geram.
Pessoas com deficiência física ou intelectual também enfrentam dificuldades na busca de relacionamentos e podem até se sentirem incapazes de conseguir um. É um processo de construção de autoestima que, a depender da condição, pode ser muito desafiador. O conhecimento sobre saúde sexual e reprodutiva entre pessoas com deficiência é frequentemente inadequado, e como resultado são menos ativos socialmente e têm dificuldades em desenvolver relacionamentos íntimos pois, além de ter que superar os desafios de acessibilidade, precisam superar o capacitismo e o preconceito que os impede de ter uma vida sexual digna. É possível observar esse fenômeno com pessoas que não seguem o padrão heteronormativo. Mesmo que a pessoa se reconheça como parte da comunidade LGBTQIAP+, isso não significa que ela vá encontrar alguém que se sinta confiante para ter uma relação, que em seu circulo social tenha plena aceitação ou conheça pessoas com quem se relacionar, especialmente quando falamos de pessoas que moram distantes de grandes centros urbanos, em que a expressão da sexualidade pode ser até mesmo perigosa para sua vida. E, por fim, o fator mais comum: não se encaixar no padrão de beleza da sociedade, e aqui entram questões como obesidade, etnia e demais aspectos. Não atender às expectativas do que seria uma 'pessoa bonita', além de ser prejudicial à autoestima, faz com que muitas pessoas se fechem para relacionamentos e desistem de buscá-lo, reforçando comportamentos como autopiedade, ressentimento e auto ódio. E como as pessoas não são unidimensionais, é comum que indivíduos se encaixem em mais de um dos fatores citados acima e, por isso, o perfil de um alguém involuntariamente celibatário é diverso e múltiplo, tem inúmeros atravessamentos e é compostos por uma variedade de pessoas.
Muitas dessas pessoas, se beneficiam da psicoterapia e da psicoeducação para ter uma maior qualidade de vida e, mesmo que não seja seu objetivo explicito, conseguem ter relacionamentos satisfatórios como resultado do processo psicoterapêutico. Acontece que graças a popularização dessa subcultura, e de que seriam esses incels, homens jovens ressentidos e misóginos, passamos por um processo de generalização apressada, com base nessa amostra barulhenta e agressiva, categorizamos e agora quando pensamos em quem seria um incel, excluímos grande parte das pessoas que se encaixam na definição básica que é simplesmente um celibatário involuntário, mas por que isso é um problema?
Como já dito, sexo é extremamente importante na nossa sociedade e igualmente um tabu, então alguém que se enquadra e se percebe como um incel, por todos os motivos já citados acima, já teria dificuldade de falar sobre isso e procurar apoio profissional ou entre seus conhecidos. E agora pode ter receio de ser confundida com 'um desses malucos de internet' e todas as comunidades e subculturas igualmente nocivas como Redpill ou MGTOW, ao invés de buscar apoio se sentirá cada vez mais sozinha e sem com quem contar. Pessoas que poderiam ser a rede de apoio ou mesmo profissionais de saúde mental que poderiam atuar em beneficio dessa pessoas podem acabar desenvolvendo visão distorcida e excessivamente julgadora com elas somente pelo fato dela ser incel, e de como esse termo é sinônimo de pensamentos e práticas repulsivas, construídos coletivamente por causa dessas comunidades que não se limitam mais aos fóruns virtuais e incentivam violências e massacres e vêm tornando cada vez mais infames em nossa sociedade, especialmente depois da série Adolescência da Netflix. As palavras são polissêmicas, e essa em especial ganhou um sentido cultural e politico sendo assim ressignificada. O problema é que a ressignificação vem e a palavra não muda, e isso gera uma bagunça. A ressignificação que esse termo passou é tão forte que atualmente incel é exclusiva para homens, e não para qualquer pessoa que seja involuntariamente celibatária. É uma categorização tão ridícula que até exclui o fato de que mulheres também podem ser involuntariamente celibatárias e com um pouco de pensamento crítico percebe-se que a nomenclatura femcel (mulher involuntariamente celibatária) é totalmente desnecessária e apenas reforça uma categorização e um identitarismo que obstrui a visão para tantas outras pessoas que poderiam se beneficiar de acolhimento e psicoterapias.

Dadas as devidas proporções, é um pouco semelhante ao que aconteceu com os mulçumanos depois do 11 de setembro. De um dia para outro, mulçumano virou sinônimo de terrorismo e até hoje para muitas pessoas, as duas coisas são equivalentes. Pessoalmente acredito que a batalha simbólica está perdida, a palavra incel não vai deixar de ser associada ao que já é atualmente, mas tenho esperança que possamos estar atentos a todas as pessoas que sofrem por não se sentirem amadas e não terem êxito em relacionamentos românticos. Minha esperança é que incels que não estão associados com essa cultura nociva possam encontrar apoio em familiares e amigos sem serem julgados por isso. Que os profissionais de saúde mental consigam ajudar de maneira eficaz e sem julgamentos essas pessoas antes que esses discursos que não trazem nada útil ou benéfico para ninguém as alcancem. Em suma, precisamos parar de confundir uma condição de vida (celibato involuntário) e extremismo gerado por essa condição de vida, pois isso limita nossa análise, cria ruído e falhas de comunicação, criando mais confusão do que ajudando pessoas.
Conheça o site Love Not Anger da criadora do fórum incel original, que ela descreve como um projeto para pesquisar como pessoas solitárias podem encontrar amor respeitoso, em vez de ficarem presas no ódio.
Referências
Ashifa. K. Woman behind “incel” says angry men hijacked her word “as a weapon of war”. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2018/apr/25/woman-who-invented-incel-movement-interview-toronto-attack>.
Canada attack suspect linked to celibates angry at women. Reuters, 24 abr. 2018. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-canada-van-incel-factbox/factbox-canada-attack-suspect-linked-to-celibates-angry-at-women-idUSKBN1HV2VJ/
Castelão, T. B., Schiavo, M. R., & Jurberg, P.. (2003). Sexualidade da pessoa com síndrome de Down. Revista De Saúde Pública, 37(1), 32–39. https://doi.org/10.1590/S0034-89102003000100007
Como surgiu o termo incel. Disponível em: https://oestadoce.com.br/arte-agenda/como-surgiu-termo-incel-termo-foi-citado-na-serie-britanica-adolescencia
Foster, A. The men “addicted” to hating women. Disponível em: https://www.news.com.au/lifestyle/relationships/dating/a-look-inside-the-group-of-men-addicted-to-hating-women/news-story/a48bbeac194041ac597c21fe5d54fc61.
Incels brasileiros pregam feminicídio e massacres na dark web. Disponível em: https://www.metropoles.com/sao-paulo/incels-brasileiros-pregam-feminicidio-e-massacres-na-dark-web.
Tirkkonen, S. K., & Vespermann, D. (2023). Incels, autism, and hopelessness: affective incorporation of online interaction as a challenge for phenomenological psychopathology. Frontiers in psychology, 14, 1235929. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2023.1235929
Vou ler e comentar mais textos.
Quando eu era criança os meninos e meninas destacadas tinham como um "esporte" o prazer de ofender, humilhar, rejeitar e bater nos colegas mais feios, tímidos, fracos e desajustados, bastasse ser exótico, excêntrico, esquisito e estranho para esculachar essa turma. Na adolescência esse "bullying" continuava sendo muito mais forte contra os meninos so que contra as meninas.
No passado esse povo era chamado de "virgem", pois na mente de bonobos falantes a vida se resume e se sustenta na capacidade de atrair e agradar pessoas para obter delas o tão "sagrado e indispensável" sexo.
Atualmente tem quem chame essa turma de pessoas de "incel", se for mulher chamam de "femcel" e o significado pejorativo da palavra "incel" é mudado conforme a narrativa da pessoa opressora, geralmente sendo comum essa pessoa ser uma mulher um bonobo falante.