Quando a nostalgia era uma doença
O médico suíço que pensou ter achado uma nova patologia, mas deu nome a um sentimento tão naturalizado em nossa contemporaneidade
Lá no século XVII, um suíço estudante de medicina começou a observar que vários pacientes apresentavam sintomas semelhantes: insônia, anorexia, perda de apetite, febre, melancolia severa e tentativas de suicídio. Contudo, para ele, tão importante quanto a sintomatologia eram os próprios enfermos: estudantes, empregadas e empregados domésticos e soldados em campanha. O que eles tinham em comum? Todos estavam no exterior, longe de sua terra natal. Animado com sua possível descoberta nosológica, Johannes Hofer cunhou pela primeira vez o termo "nostalgia" em uma dissertação médica, no ano de 1688. Assim, o conceito entrou oficialmente para a lista de comportamentos humanos que, atualmente, são vistos como banais e comuns, mas que já foram classificados como doenças.
A palavra nostalgia tem raízes gregas, mas não se originou na Grécia Antiga. Nos (nostos) significa "voltar para casa", e algia significa "dor" ou "saudade". Hofer uniu esses termos para definir com precisão sua descoberta pois, para ele, tratava-se de uma espécie de “doença do exílio” ligada a um ufanismo supostamente natural. Tanto que chegou a propor outros nomes como nosomania e filopatridomania para descrever os mesmos sintomas, mas foi nostalgia que acabou se popularizando. Assim, essa sensação que hoje é comum na política, na literatura e no cinema teve, curiosamente, origem na medicina. De fato, é inusitado imaginar alguém saindo do consultório com uma receita para tratar “nostalgia”.
Com a doença veio o tratamento. Hofer recomendava que os acometidos pela nostalgia regressassem o mais rápido possível à sua terra natal. Aos suíços, em especial, ele prescrevia uma agradável viagem aos Alpes — símbolos de sua pátria. Nada mal. No entanto, mesmo quando o retorno não era possível, não havia motivo para desespero, pois os tratamentos paliativos mais comuns incluíam ópio, emulsões hipnóticas e o uso de sanguessugas para aliviar os sintomas. Com o tempo, a nostalgia se espalhou pela Europa, tornando-se muito conhecida e tratada como uma doença curável, maléfica, mas não letal, e Hofer parecia orgulhoso de alguns de seus pacientes. Para ele, a nostalgia era uma demonstração do patriotismo de seus compatriotas, que amavam tanto o encanto de sua terra natal a ponto de adoecer, e isso trouxe uma consequência inesperada.
Na Europa, estava acontecendo um evento cultural muito popular chamado: guerra. Entre os soldados que serviam no exterior, iniciou-se uma epidemia de nostalgia. Eles afirmavam que não conseguiam mais dormir ou comer — muito menos lutar. Precisavam ser enviados de volta para casa. Diziam que estavam doentes, e aí surgia um problema: quem estava dizendo a verdade? Seria um surto de nostalgia fingida? Eles não diziam simplesmente que queriam voltar para casa, diziam que estavam sofrendo. Relatavam os sintomas típicos pois sabiam que a recomendação médica seria a dispensa, afinal a nostalgia era considerada uma doença. Esse surto acabou por reforçar e desafiar as concepções de patriotismo e espírito nacional pois, o que fazer com soldados aflitos durante campanhas estrangeiras? Homens que amavam tanto sua pátria que nunca queriam deixá-la… ou mesmo morrer por ela?
Em 1733, o exército russo, então em campanha na Alemanha, foi acometido por um surto tão intenso de nostalgia que nenhum soldado conseguia combater — todos estavam acamados. A situação se agravou a tal ponto que o general decidiu propor um tratamento radical contra o “vírus da nostalgia”: "o primeiro a adoecer será enterrado vivo". Funcionou. Os soldados “milagrosamente” se sentiram motivados o bastante para deixarem a ala médica e voltarem ao campo de batalha. O evento ficou muito conhecido na época e, a partir daí, os "tratamentos" para nostalgia começaram a envolver algum tipo de tortura. Durante a Revolução Francesa de 1789, o médico francês Jourdain Le Cointe sugeriu que a nostalgia deveria ser tratada com dor e terror, inspirado justamente na experiência do exército russo. Contudo, ainda no século XVIII, começaram a surgir diversos estudos de caso com pacientes nostálgicos. Descobriu-se que o retorno ao lar nem sempre curava os sintomas. Muitos voltavam para casa e não melhoravam; alguns chegavam a morrer. A nostalgia tornava-se cada vez menos curável, pois se baseava em uma sensação de perda que ultrapassava a história pessoal. Não se tratava necessariamente de uma perda concreta, nem de algo que pudesse ser facilmente localizado. Surgiram relatos de pessoas que, ao voltar para casa, sentiam vontade de partir novamente, dessa vez para algum lugar mais distante, talvez um lugar visitado na juventude, ou apenas visitado em histórias de família. O retorno parecia nunca terminar. Havia sempre um passado a ser reencontrado. Foi somente no século XIX que a palavra “nostalgia” passou a ser usada para além da ideia de retorno ao lar e começou a representar uma saudade mais abstrata — o desejo de retornar aos velhos tempos, à infância, àquilo que não se pode mais viver. Tornou-se tema de artistas, filósofos e sociólogos e, progressivamente, ela começou a ser tratada como um estado emocional e no inicio do século XX ela já não aparecia mais na literatura médica.
Nesse contexto, é possível perceber que o avanço da psicologia enquanto ciência permitiu um maior conhecimento sobre os mecanismos emocionais, a memória, a subjetividade e sua relação com a cultura. Há muito tempo se reconhece o poder da nostalgia em obras culturais e sua frequência como estética e discurso no marketing, usada para potencializar o consumo. James Phillips, em seu texto Distance, Absence, and Nostalgia, argumenta que a distância e a ausência moldam a experiência humana — especialmente no fenômeno da nostalgia. Ele discute como a ausência de um objeto (ou pessoa) não implica necessariamente sua completa inexistência para a consciência: aquilo que não está presente pode, ainda assim, permanecer vivo na mente de forma intencional. A nostalgia surge como uma intensificação emocional da distância, seja ela temporal ou espacial, representando o desejo de recuperar algo ausente, mas idealizado. Nossa memória é, de fato, impressionante. Contudo, ela não funciona como um registro perfeito e imparcial, mas é fortemente influenciada por nossas emoções. A maneira como percebemos o mundo molda tanto a forma como o interpretamos quanto a forma como nos recordamos dele. Quando existe um vínculo emocional, seja positivo ou negativo, a amígdala — região cerebral que processa emoções — é ativada. Essa ativação libera hormônios que reforçam a memória emocional, tornando-a mais resistente ao esquecimento. Essa memória emocional não apenas influencia a forma como lembramos de certos eventos, mas também afeta nossas decisões e preferências. Esse processo é especialmente eficaz para armazenar conhecimento factual e conceitual sobre o mundo, como significados de palavras, fatos, conceitos e ideias — aquilo que chamamos de memória semântica.
É interessante comentar que nós, humanos, não organizamos nossa percepção temporal só por datas, mas também por conceitos e os usamos como referência:
Por isso, quanto mais distante algo está de nós, mais abstrato ele nos parece. Dessa forma, quanto mais antigo for o acontecimento, maior será o investimento emocional necessário para que possamos nos lembrar dele. Tendemos a agrupar informações, preencher lacunas e idealizar eventos, situações ou objetos associados a esses momentos. É nesse ponto que Phillips propõe que o distanciamento não apenas nos separa fisicamente das experiências, mas também reconfigura o significado que lhes atribuímos. Assim, a nostalgia se constrói como um anseio por um passado idealizado — mesmo que esse passado nunca tenha sido vivido pelo indivíduo. Ela pode estar ligada à construção da identidade pessoal e coletiva, assim como à sensação de pertencimento. Não é difícil encontrar historiadores críticos à nostalgia. Para Michael Kammen por exemplo, “nostalgia... é essencialmente história sem culpa. A herança é algo que nos enche de orgulho, em vez de vergonha.” Nesse sentido, a nostalgia pode ser vista como uma forma de abdicar da responsabilidade histórica e pessoal, como um retorno emocional ao lar sem culpa, o que pode ser entendido como um fracasso ético e estético. A nostalgia tende a produzir visões subjetivas — por vezes fantasiosas — que moldam de maneira distorcida nossas percepções cotidianas, históricas e políticas. Trata-se de uma imaginação aflita, que prefere o conforto do passado idealizado às contradições do presente.
Mesmo que não seja minha área, considero válido recorrer aqui ao conceito psicanalítico de fantasia, que se trata das representações mentais, muitas vezes inconscientes, que surgem como forma de lidar com desejos e conflitos. A fantasia vai além de um simples escape da realidade: ela funciona como um meio de explorar desejos, transformar e até dar forma simbólica às nossas experiências e anseios. Sob esse ponto de vista, a nostalgia pode ser compreendida como a saudade de um lar que já não existe mais — ou que, talvez, nunca tenha existido. É ao mesmo tempo um sentimento de perda e deslocamento, e um romance com a própria fantasia. Justamente por ser idealizada, essa experiência nostálgica é impossível de ser plenamente concretizada ou vivida: o amor nostálgico só sobrevive em um relacionamento à distância.
Na cultura globalizada em que vivemos, marcada por um constante resgate do passado, essa nostalgia se intensifica. Muitas vezes, sentimos saudade de uma época que nem sequer vivemos, uma memória emprestada, construída por narrativas culturais e afetivas. Assim como os nostalgicamente enfermos do século XVII, que não melhoravam apenas ao retornar à sua terra natal, mas ansiavam por um passado ainda mais remoto, a cidade da infância, o vilarejo dos pais ou mesmo um lugar que jamais conheceram, um lugar idealizado que talvez nunca tenha existido, mas por algum motivo é uma presença ausente que leva a uma desconexão com o presente por esse elo sentimental idealizado. É como uma promessa de que o melhor já passou e que se for resgatado, tudo voltará a será melhor. Isso pode nos tentar a abrir mão do pensamento crítico em nome de um vínculo emocional confortável. Por isso o perigo da nostalgia é que ela tende a confundir o lar real com o imaginário.
Nunca volte para um lugar em que você já foi feliz
A felicidade é uma combinação de fatores: sua subjetividade, as pessoas, o local e o que aquilo significa naquele instante. A nostalgia é uma memória mentirosa
Então, quando George Rosen disse que a nostalgia é uma condição psicopatológica que afeta indivíduos desenraizados, cujos contatos sociais são fragmentados, que estão isolados e que se sentem totalmente frustrados e alienados, parecia um exagero ou um humor mórbido de um cientista, mas atualmente pode ser mais fácil encontrar quem concorde. A história da nostalgia é um exemplo de como nossos conceitos de saúde e doença se transformam com o passar do tempo, pois pode soar ridículo hoje em dia que alguém iria ao médico por se sentir nostálgico, mas não parece estranho recomendar a um adulto que afirma ter sua infância destruída pela mudança da cor de um personagem procure um psiquiatra. Com isso, tão certo quanto passasse o tempo, as coisas mudam, e pode ser que no futuro comportamentos que nos parecem como banais hoje em dia sejam considerados doenças ou que as graves enfermidades de agora nem sejam consideradas doenças no futuro. Essa é uma das consequências da feroz passagem do tempo: com um futuro cada vez mais incerto, o passado se faz presente e, se essa saudade é tão forte que não cabe só em nós, então estamos ficando de fato um pouco mais doentes.
Recomendações
Se quiser saber mais sobre memória leia:
O que as lesmas nos ensinaram sobre memória (e ganharam um Nobel por isso)
Já se questionou o que é a memória? Em um definição simples ela é a capacidade de registro, manutenção e evocação de fatos que já ocorreram, sendo uma das habilidades mais fascinantes do nosso cérebro. Tão impressionante quanto é complexa, defini-la até que é fácil mas, e compreendê-la? Afinal, como a memória é formada? Por décadas neurocientistas tenta…
Se quiser saber mais sobre como nosso cérebro nos engana:
Como não ser um ignorante
Ninguém quer ser um idiota. Não saber mexe com alguns dos medos mais profundos do ser humano: o medo de estar sendo enganado e estar tomando as decisões erradas. Por isso usamos nossas capacidades de raciocínio e todo um sistema muito particular para decidirmos nossas ações. Contudo, a razão humana não é à prova de falhas e é muito comum que as pessoas …
Referências
Michael Kammen, Acordes místicos da memória: a transformação da tradição na cultura americana (Nova York: Knopf, 1991) 688.
Neufeld, C. B., Brust-Renck, P. G., Leite, L. S., & Palma, P. de C.. (2013). O efeito do alerta emocional na qualidade da memória. Estudos De Psicologia (campinas), 30 (3), 337–344. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2013000300003
Pergher, G. K., Grassi-Oliveira, R., Ávila, L. M. de ., & Stein, L. M.. (2006). Memória, humor e emoção. Revista De Psiquiatria Do Rio Grande Do Sul, 28 (1), 61–68. https://doi.org/10.1590/S0101-81082006000100008
Phillips, J. Distance, Absence, and Nostalgia. Selected Studies in Phenomenology and Existential Philosophy, v. 11, p. 64–75, 1985. [https://doi.org/10.5840/sspep1985119](https://doi.org/10.5840/sspep1985119)
Rosen, G. (1975). Nostalgia: um transtorno psicológico 'esquecido'. Medicina Psicológica, 5 (4), 340–354. doi:10.1017/S003329170005697X
Svetlana Boym. Nostalgia and Its Discontents. Disponível em: https://hedgehogreview.com/issues/the-uses-of-the-past/articles/nostalgia-and-its-discontents.
Trope, Y., & Liberman, N. (2010). Construal-level theory of psychological distance. _Psychological review_, _117_(2), 440–463. https://doi.org/10.1037/a0018963
Janssen, SMJ, Chessa, AG e Murre, JMJ Memória para o tempo: como as pessoas datam eventos. Memória e Cognição 34 , 138–147 (2006). https://doi.org/10.3758/BF03193393
Seus textos são sempre geniais! Admiro mto seu trabalho e o conhecimento q vc transmite com temas super diferentes mas ao msm tempo tão recorrentes q passam despercebidos por nós, mas quando vc aprofunda neles com novas perspectivas e conhecimentos surge um novo mundo a ser compartilhado, meus parabéns pela escrita 👏🏻✨🤍
Que escrita incrível! Que prazer poder ler teu trabalho, uma maravilhosa abordagem histórica (e médica) de um tema banal aos olhos desatentos.
Me prendeu do início ao fim!