O que as lesmas nos ensinaram sobre memória (e ganharam um Nobel por isso)
Saiba como as Aplysias Californicas nos ajudaram a aprender como nossa memória funciona
Já se questionou o que é a memória? Em um definição simples ela é a capacidade de registro, manutenção e evocação de fatos que já ocorreram, sendo uma das habilidades mais fascinantes do nosso cérebro. Tão impressionante quanto é complexa, defini-la até que é fácil mas, e compreendê-la? Afinal, como a memória é formada? Por décadas neurocientistas tentaram entender esses mecanismos neurobiológicos até que o neurocientista Eric Kandel encontrou a resposta nas simples e simpáticas lebres-do-mar.
A lebre-do-mar ou Aplysia californica é uma espécie de lesma marinha adorável que é encontrada no Oceano Pacífico, na costa da Califórnia (EUA) e no noroeste do México. Foram estudadas por décadas por Erick Kandel e suas descobertas contribuíram para entendermos como as memórias são formadas biologicamente. Mas então você se questiona: por que usar lesmas para estudar memória? Acontece que a A. californica tem um sistema nervoso relativamente simples, com neurônios grandes e fáceis de estudar, e o foco foi estudar o reflexo defensivo da lesma uma vez que quando ela sentia um toque próximo às brânquias ela as retraia como uma forma de se proteger. Assim, ele aplicou na lesma diferentes formas de aprendizado:
Habituação: A repetição de um estímulo fraco fez a resposta defensiva diminuir. Através de um pequeno choque elétrico repetido diversas vezes a lesma para de se contrair pois havia se acostumado com esse estímulo
Sensibilização: Um estímulo forte primário que aumentou a resposta da lesma a estímulos secundários mais fracos. Um choque elétrico forte fez com que ela reagisse a choques fracos subsequentes
Aprendizado associativo: A combinação de um estímulo neutro e um estímulo forte teve como resultado um comportamento mais intenso e duradouro. Um toque simples seguido por um choque, quando a lesma sentiu novamente o toque ela se retraiu e permaneceu retraída por mais tempo.
Até aqui nada muito impressionante, mas a grande vantagem foi poder estudar como a estrutura do sistema nervoso da A. californica se comportava. Vamos revisar: nós podemos dividir a memória como memória de curto prazo e memória de longo prazo. A memória de curto prazo nos permite reter uma determinada quantidade de informação durante um período curto de tempo mantendo temporariamente as informações processadas que desaparecem rápido; já a memória de longo prazo é a capacidade de guardar informações por um longo período de tempo, e é responsável por guardar lembranças, experiências e conhecimentos adquiridos ao longo da vida, sendo uma das principais formas de armazenamento de informações no cérebro. Analisando os neurônios da A. californica, perceberam que a memória de curto prazo acontecia através de modificações químicas temporárias nas sinapses, enquanto a memória de longo prazo exigia alterações duradouras, como o crescimento de novas conexões neuronais. O processo ocorre através de uma síntese proteica, e sempre que a lesma era exposta a uma informação ou estímulo novo esse estímulo era transcrito nos neurônios deixando um rastro, uma marca física simples que correspondia a experiência que havia acabado de acontecer, mas depois de um tempo ocorria um processo de formação de proteínas nas células nervosas que consolidava a aprendizagem como uma redes neuronal, envolvendo a ativação de genes no núcleo da célula, o que permite a criação de novas sinapses, onde a experiência é armazenada como uma memória potencialmente recuperável se tornando uma memória de longo prazo. Essas redes de neurônios são chamadas de engramas.
Esse estudo demonstrou que as experiências modificam fisicamente o cérebro, que vai se adaptando para armazenar as informações aprendidas no ambiente e ao longo do tempo, quando as células neuronais são estimuladas no hipocampo ou amígdala (regiões do cérebro responsáveis pela memorização), estes engramas vão se combinando com outros e se associando para a formação de novas ligações entre os neurônios, o que é conhecido como plasticidade sináptica. Dessa forma, as memórias são inicialmente armazenadas podendo ser recuperadas posteriormente, entretanto também pode persistir silenciosamente mesmo quando não recuperadas naturalmente. A memória pode estar instalada e não ser recuperada, o cérebro pode ter aprendido um determinado comportamento e mesmo que não exista uma memória exatamente correlacionada, esse comportamento pode se manifestar por causa de experiências anteriores mesmo que o organismo não tenha consciência dessas memórias.
Resumidamente, as lesmas nos ensinaram que o aprendizado altera fisicamente o cérebro e para transformar uma memória de curto prazo em longo prazo, é necessário um reforço repetido do estímulo, levando a mudanças estruturais nos neurônios, pois ao adquirirmos um novo conhecimento e o armazenarmos como memória, criamos ramificações em nossos neurônios, que são as células nervosas do nosso cérebro, estabelecendo padrões de comportamento e o individuo pode ou não ter consciência disso. Por isso vale destacar que normalmente, ao falarmos sobre memória, nós assumimos que uma memória boa quer dizer lembrar-se de mais coisas por mais tempo. Contudo, a memória não evoluiu simplesmente para armazenar informações e sua função vai além: a memória seleciona quais informações armazenar e destacar como uma maneira de reconhecer padrões. Não é uma uma questão de quantidade mas uma curadoria de informações que são mais relevantes e isso demanda muita energia das células pois uma memória que não possui filtro, ao reter informações, seria extremamente prejudicial para a saúde mental. Ivan Izquierdo, médico e cientista argentino naturalizado brasileiro, defendia que o esquecimento é inevitável e necessário para abrir espaço no cérebro às novas memórias, e dessa forma nós somos o que lembramos e também o que resolvemos esquecer.
Dessa maneira, no ano de 2000, Eric Kandel foi laureado com o prêmio Nobel de medicina e fisiologia por seu trabalho com as lesmas e por ter descoberto os mecanismos neurais responsáveis pela formação das memórias. Essas pesquisas foram a base para a compreensão de diversos transtornos e doenças mentais como a doença de Alzheimer, por exemplo. Talvez você se questione como isso se aplicaria a nós humanos, mesmo que sejam lesmas marinhas. E isso de fato é uma pergunta válida e a resposta resumidamente é que: mesmo que os organismos vivos da Terra sejam muito diferentes, as bases biológicas de interação bioquímica são muito semelhantes, como por exemplo os neurotransmissores, as proteínas, os neurônios e suas sinapses, e por isso, embora você não seja uma lesma e seu sistema nervoso seja incomparavelmente mais complexo do que da Aplysia californica, os moduladores desse sistema (proteínas e neurotransmissores) e os canais por onde essa atividade ocorre (neurônios) são minimamente semelhantes. Essa pesquisa demonstra como a ciência é adaptativa e para encontrar respostas é necessário a criatividade de procurar mesmo em lugares tão inusitados quanto o fundo do mar.
Referências:
Bailey CH, Kandel ER. Structural changes accompanying memory storage. Annu Rev Physiol. 1993;55:397-426. doi: 10.1146/annurev.ph.55.030193.002145. PMID: 8466181.
Izquierdo, I., Bevilaqua, L. R. M., & Cammarota, M. (2006). A arte de esquecer. Estudos Avançados, 20 (58), 289-296.
John H. Byrne, Benny Hochner, György Kemenes, 4.23 - Cellular and Molecular Mechanisms of Memory in Mollusks, Editor(s): John H. Byrne, Learning and Memory: A Comprehensive Reference (Second Edition), Academic Press, 2017, Pages 453-474, ISBN 9780128052914, https://doi.org/10.1016/B978-0-12-809324-5.21097-3 (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/B9780128093245210973)
Kandel ER, Schwartz JH. Molecular biology of learning: modulation of transmitter release. Science. 1982 Oct 29;218(4571):433-43. doi: 10.1126/science.6289442. PMID: 6289442.
Pinsker H, Kupfermann I, Castellucci V, Kandel E. Habituation and dishabituation of the gill-withdrawal reflex in Aplysia. Science. 1970 Mar 27;167(3926):1740-2. doi: 10.1126/science.167.3926.1740. PMID: 5416541.
Aviso
Olá caro leitor, espero que você esteja bem, agora teremos novos textos às terças pela manhã, fique atento no seu INBOX, até a próxima.
Fiquei com muita vontade de fazer um prancha científica desse pequeno animalzinho marinho.
Nunca tinha ouvido falar desse estudo e achei muito interessante. Espero que isso nos ajude a entender melhor o funcionamento das nossas próprias memórias (que conhecemos tão pouco) e, quem sabe até, futuramente criar uma cura para doenças degenerativas que afetam o armazenamento de informações.
Parabéns pelo texto, como sempre!
voce como sempre prometendo pouco e entregando muito