Aquecimento global vai causar uma crise de saúde mental
Um novo estudo publicado na revista Nature, que mostra como o calor extremo tem afetado o bem-estar emocional de milhões de australianos, e o que isso significa para o Brasil
Quando falamos sobre as mudanças climáticas, é - e sempre foi - comum associá-las ao aquecimento global, já que o aumento da temperatura é possivelmente o aspecto mais conhecido dessas transformações. Esse fenômeno possui um apelo catastrófico facilmente compreensível, como o derretimento das calotas polares e o aumento do nível do mar. Contudo, um estudo publicado recentemente na revista Nature alerta para um perigo silencioso: se o calor extremo não for enfrentado, teremos de lidar não apenas com uma crise climática, mas também com uma crise de saúde mental.
O estudo sugere que as altas temperaturas na Austrália já estão afetando as condições de saúde mental da população. Mas por que isso acontece? O calor excessivo pode afetar diretamente o funcionamento do cérebro e do sistema nervoso. Quando uma pessoa apresenta febre alta, por exemplo, pode haver alterações na capacidade de pensar e raciocinar, o que pode levar à confusão mental, alucinações e até convulsões, sintomas conhecidos como delírios febris. Isso ocorre porque o aumento da temperatura corpórea afeta o fornecimento de oxigênio ao cérebro, modificando o funcionamento dos neurotransmissores. Essas alterações podem causar desequilíbrios como distúrbios no padrão de sono, na produção de hormônios como o cortisol e na regulação do estresse, todos elementos fundamentais para o equilíbrio emocional.
Por exemplo, quando o índice médio de temperatura do globo de bulbo úmido atinge 35 °C, pode ocorrer superaquecimento em áreas do cérebro sensíveis à temperatura e os hormônios da tireoide são inibidos, levando ao hipotireoidismo funcional — condição que afeta funções psicológicas e a regulação emocional. Para pessoas com transtornos mentais preexistentes, as ondas de calor podem agravar distúrbios psiquiátricos e comportamentais subjacentes, aumentando o risco de morte em mais de três vezes. Em Phoenix, no Arizona (uma região de clima árido), 0,28% das hospitalizações por esquizofrenia foram atribuídas ao calor extremo. Além disso, temperaturas elevadas podem intensificar quadros de ansiedade, depressão e transtornos psicóticos, além de aumentar o isolamento, a irritabilidade e o risco de uso abusivo de substâncias. Tudo isso contribui para um aumento significativo de casos de ansiedade, depressão, comportamentos de risco, violência, transtorno afetivo bipolar e até esquizofrenia.
Os pesquisadores analisaram dados de 2003 a 2018 na tentativa de quantificar os transtornos mentais e comportamentais, utilizando um indicador chamado Anos de Vida Ajustados por Incapacidade (DALYs, sigla em inglês). Mas do que exatamente se trata esse indicador? O DALYs é uma medida utilizada em saúde pública para quantificar a carga total de uma doença. Aqui, o termo carga refere-se à perda de saúde de uma população causada por doenças, lesões e fatores de risco. O funcionamento do DALYs baseia-se na soma de dois componentes: os anos de vida perdidos por morte precoce (Years of Life Lost – YLL) e os anos vividos com incapacidades devido a doenças ou condições crônicas (Years Lived with Disability – YLD). A combinação desses dois indicadores permite calcular quanto tempo de vida saudável foi perdido por causa de mortes prematuras ou incapacidades duradouras.
Vamos a um exemplo:
🏘Em uma cidade 10 pessoas morreram prematuramente por agravamento de transtornos mentais associados a ondas de calor.
A expectativa de vida média era de 80 anos.
Essas pessoas morreram aos 50 anos.
Cálculo de YLL (Anos de Vida Perdidos):
10 pessoas × (80 − 50 anos) = 300 YLL
Além disso, outras 100 pessoas ficaram com depressão moderada relacionada ao calor por 5 anos, com um fator de incapacidade de 0,2 (ou seja, 20% de perda de qualidade de vida).
Cálculo de YLD (Anos Vividos com Incapacidade):
100 pessoas × 5 anos × 0,2 = 100 YLD
✅Resultado final:
DALYs = YLL + YLD = 300 + 100 = 400 DALYs 💀
Ou seja, o calor extremo causou uma perda total de 400 anos de vida saudável na população analisada
Usando essa metodologia, os pesquisadores descobriram que, entre 2003 e 2018, as altas temperaturas contribuíram para uma perda anual de aproximadamente 8.458 DALYs devido a transtornos mentais e comportamentais, representando 1,8% da carga total dessas doenças na Austrália. Em média, 8.458 anos de vida saudável foram perdidos por ano por causa dos efeitos do calor sobre doenças mentais e comportamentais. Isso inclui tanto mortes precoces quanto anos vividos com transtornos mentais incapacitantes, como depressão, ansiedade, psicoses, entre outros.
Os pesquisadores também utilizaram modelagem matemática para fazer projeções futuras. Essas projeções consideraram dois cenários de emissões de gases de efeito estufa (RCP): RCP 4.5 (moderado) e RCP 8.5 (alto). Foram avaliados, ainda, três níveis de adaptação da população às mudanças climáticas: nenhuma, parcial e total. Ou seja, trata-se da capacidade da sociedade de se ajustar aos efeitos do calor extremo, com foco especial na redução dos impactos sobre a saúde mental e comportamental. Os critérios para os diferentes níveis de adaptação são os seguintes:
❌Nenhuma adaptação (cenário pessimista):
A população não muda seus comportamentos, políticas ou infraestrutura para lidar com o calor.
– Falta de ar-condicionado em locais públicos e escolas;
– Ausência de campanhas de conscientização sobre os riscos à saúde mental relacionados ao calor;
– Sistemas de saúde despreparados para lidar com surtos de sofrimento psíquico durante ondas de calor.
Consequência: aumento significativo nos casos de transtornos mentais e mais DALYs perdidos (anos de vida ajustados por incapacidade).
⛅️Adaptação parcial (cenário intermediário):
A sociedade implementa algumas medidas para se adaptar, mas não o suficiente para neutralizar os impactos do calor.
– Expansão limitada de áreas verdes nas cidades;
– Climatização em algumas escolas e hospitais;
– Acesso facilitado a aparelhos de refrigeração domiciliar;
– Profissionais de saúde treinados sobre os efeitos climáticos na saúde mental, mas apenas em parte da rede de atendimento, ou predominantemente no setor privado.
Consequência: redução moderada dos danos causados pelo calor.
✅Adaptação total (cenário ideal):
A população e o governo fizerem o possível para lidar com o calor e proteger a saúde mental.
– Cidades planejadas com sombra, ventilação natural e vegetação urbana;
– Infraestrutura adaptada (escolas, transportes e hospitais);
– Amplo acesso a aparelhos de refrigeração domiciliar;
– Protocolos de saúde pública para proteger grupos vulneráveis durante períodos de calor extremo;
– Campanhas educativas e sistemas de vigilância climática e emocional.
Consequência: queda significativa na carga de transtornos mentais atribuíveis ao calor.
Com os resultados obtidos, espera-se um aumento de 11,0% a 17,2% na carga atribuível às altas temperaturas já na década de 2030. Isso significa que, mesmo em cenários moderados, o impacto do calor extremo sobre a saúde mental aumentará significativamente em um curto período. Para a década de 2050, projeta-se um aumento ainda maior — entre 27,5% e 48,9%. Esses números demonstram que, se não houver adaptação adequada nem políticas eficazes para conter o aquecimento, quase metade do sofrimento mental associado ao calor será inevitável. Ou seja, entre 2030 e 2050, o número de anos de vida saudável perdidos por sofrimento psíquico relacionado ao calor poderá subir de 8.458 para quase 12.600 por ano, somente na Austrália. Nesse cenário, mesmo que o risco individual pareça pequeno, o impacto coletivo pode ser enorme.
Outra descoberta importante é que o aumento futuro projetado na carga de Transtornos Mentais e Comportamentais atribuível à alta temperatura não se deve apenas ao envelhecimento da população. A ideia comum de que "só os mais velhos vão sofrer" não se aplica aqui. Os jovens adultos estão entre os mais afetados, possivelmente por estarem mais expostos ao calor — seja pelo trabalho, deslocamentos ou responsabilidades sociais. Essa vulnerabilidade é ainda mais preocupante quando se considera que cada vez mais jovens enfrentam problemas de saúde mental, e em idades cada vez mais precoces, além da carga emocional adicional decorrente das crises climáticas1. Se nada for feito para reduzir o aquecimento global, o calor extremo causará um número crescente de doenças mentais, especialmente entre jovens adultos. Mesmo que a população cresça e envelheça, o calor por si só já é um fator determinante pois, como já discutido, agrava os sintomas e intensifica o sofrimento psíquico.
Além disso, mesmo que você não tenha problemas de saúde mental, ainda deve considerar um fator importante: as altas temperaturas podem afetar o comportamento, tornando as pessoas mais agressivas e com menor capacidade de tomar decisões. Pessoas expostas ao calor tendem a ficar mais ansiosas e irritadas e, por isso, podem agir de forma mais impulsiva, mesmo que não apresentem nenhum tipo de transtorno mental. Ou seja, o calor pode impactar a saúde mental até mesmo de indivíduos considerados saudáveis. É importante lembrar que estamos falando de percepção de calor — ou seja, de como o indivíduo sente e interpreta a temperatura em seu ambiente. Isso não significa que pessoas que vivem em regiões frias sejam, por regra, menos ansiosas ou irritadiças, nem que quem vive em locais quentes seja naturalmente mais estressado. A percepção de calor avaliada e considerada aqui é subjetiva e depende do contexto de cada pessoa.
Mas e o Brasil nessa história?
Não que a Austrália não seja quente — de fato, o país tem enfrentado ondas de calor extremo nos últimos anos —, mas a realidade é diferente para nós, que vivemos tão próximos à Linha do Equador. A temperatura média nacional na Austrália gira em torno de 21 °C. Há variações regionais: no norte, a média fica entre 28 °C e 30 °C; no sul, entre 14 °C e 18 °C; e no interior desértico, durante o verão, as temperaturas podem ultrapassar os 40 °C. Já no Brasil, a temperatura média anual é de 25 °C, e, com um clima predominantemente tropical, o país apresenta variações menos acentuadas:
– Norte: 25 °C a 27 °C
– Nordeste: 27 °C a 29 °C
– Centro-Oeste: 24 °C a 26 °C
– Sudeste: 20 °C a 24 °C
– Sul: 16 °C a 20 °C
O Brasil é, em média, mais quente que a Austrália, principalmente por conta de nossa posição em relação à Linha do Equador. Essa posição nos torna especialmente vulneráveis às mudanças climáticas e aos efeitos do aquecimento global. Além dos impactos ambientais óbvios, o País pode estar prestes a enfrentar uma crise de saúde mental se não começarmos a considerar os efeitos do calor sobre o bem-estar psicológico da população.
O jornal El País entrevistou Regeane Oliveira Suares, jovem indígena Terena e estudante de Medicina na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), que relatou como as mudanças climáticas têm afetado sua saúde mental e suas vivências.
Saí de uma cidade pequena onde todos se conheciam e a rotina era diferente. Quando comecei a morar na cidade, minha saúde mental piorou muito. Comecei a desenvolver depressão e ansiedade [..] Mas se deixar a comunidade foi um desafio, retornar e ver que a terra e a paisagem haviam mudado também foi. Notei mudanças drásticas nas plantações. A falta de chuva esgotou o solo e o sol forte destruiu a maior parte do que era cultivado para alimentação ou venda. O rio estava cada vez mais seco e muitas vezes até desviado, criando uma paisagem que descrevo como 'triste'
Regeane Oliveira Suares
Em 2021, Regeane participou de um projeto de pesquisa da sua faculdade para investigar as ações necessárias à melhoria da saúde mental indígena frente às mudanças climáticas. A pesquisa propôs preservar os territórios indígenas, respeitar seus modos de vida e quebrar o tabu que ainda envolve a saúde mental nessas comunidades. Trata-se de um dos poucos estudos sobre saúde mental e mudanças climáticas realizados na América Latina. Já em 2022, a Fiocruz conduziu estudos sobre as ilhas de calor em favelas do Rio de Janeiro, e os dados indicaram que moradores de comunidades como o Complexo da Maré enfrentam sensações térmicas superiores a 60 °C, em razão da urbanização densa e da ausência de áreas verdes. Essas condições extremas têm sido associadas a diversos problemas de saúde, incluindo impactos na saúde mental, como aumento do estresse e do desconforto psicológico. É importante destacar que todas essas questões são multifacetadas e vão muito além da discussão sobre saúde mental, envolvendo também temas como racismo ambiental e seguridade social.
Em resumo, o Brasil possui estudos quantitativos que utilizam métricas como os DALYs para gerar dados fundamentais sobre a saúde da população. No entanto, ainda não existem pesquisas no país que apliquem diretamente a métrica de Anos de Vida Ajustados por Incapacidade (DALYs) para quantificar a carga de doenças mentais atribuível especificamente ao calor extremo. Embora existam estudos e relatórios que abordem, separadamente, os impactos do calor na saúde mental e a carga geral de transtornos mentais no Brasil, falta integração entre esses dados. Essa lacuna dificulta a formulação de políticas públicas eficazes que considerem a saúde mental no contexto das mudanças climáticas. Mesmo com a ausência de estudos integrados, não é precipitado deduzir que o Brasil possa enfrentar um cenário semelhante ao observado em outros países. Isso nos dá ainda mais motivos para agir frente às mudanças climáticas, pois não precisamos de mais nada para perturbar nosso juízo.
Referências:
Beggs, P. J., Zhang, Y., McGushin, A., Trueck, S., Linnenluecke, M. K., Bambrick, H., Capon, A. G., Vardoulakis, S., Green, D., Malik, A., Jay, O., Heenan, M., Hanigan, I. C., Friel, S., Stevenson, M., Johnston, F. H., McMichael, C., Charlson, F., Woodward, A. J., & Romanello, M. B. (2022). The 2022 report of the MJA-Lancet Countdown on health and climate change: Australia unprepared and paying the price. The Medical journal of Australia, 217 (9), 439–458. https://doi.org/10.5694/mja2.51742
Bonadiman, C. S. C., Passos, V. M. de A., Mooney, M., Naghavi, M., & Melo, A. P. S.. (2017). A carga dos transtornos mentais e decorrentes do uso de substâncias psicoativas no Brasil: Estudo de Carga Global de Doença, 1990 e 2015. Revista Brasileira De Epidemiologia, 20, 191–204. https://doi.org/10.1590/1980-5497201700050016
Bouchama, A., Dehbi, M., Mohamed, G., Matthies, F., Shoukri, M., & Menne, B. (2007). Prognostic factors in heat wave related deaths: a meta-analysis. Archives of internal medicine, 167 (20), 2170–2176. https://doi.org/10.1001/archinte.167.20.ira70009
Charlson, F., Ali, S., Benmarhnia, T., Pearl, M., Massazza, A., Augustinavicius, J., & Scott, J. G. (2021). Climate Change and Mental Health: A Scoping Review. International journal of environmental research and public health, 18 (9), 4486. https://doi.org/10.3390/ijerph18094486
Crank, P. J., Hondula, D. M., & Sailor, D. J. (2023). Mental health and air temperature: Attributable risk analysis for schizophrenia hospital admissions in arid urban climates. The Science of the total environment, 862, 160599. https://doi.org/10.1016/j.scitotenv.2022.160599
Lawrance, EL, Thompson, R., Newberry Le Vay, J., Page, L. & Jennings, N. O impacto das mudanças climáticas na saúde mental e no bem-estar emocional: uma revisão narrativa das evidências atuais e suas implicações. Int. Rev. Psychiatry. 34, 443–498 (2022).
Liu, J., Varghese, BM, Hansen, A. et al. Aumento da carga de problemas de saúde mental atribuível à alta temperatura na Austrália. Nat. Clim. Chang. (2025). https://doi.org/10.1038/s41558-025-02309-x
Norloei, S., Jafari, M. J., Omidi, L., Khodakarim, S., Bashash, D., Abdollahi, M. B., & Jafari, M. (2017). The effects of heat stress on a number of hematological parameters and levels of thyroid hormones in foundry workers. International journal of occupational safety and ergonomics : JOSE, 23 (4), 481–490. https://doi.org/10.1080/10803548.2016.1246122
Schmeltz, M. T., & Gamble, J. L. (2017). Risk characterization of hospitalizations for mental illness and/or behavioral disorders with concurrent heat-related illness. PloS one, 12(10), e0186509. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0186509
Wang, J. X., & Liu, X. Q. (2024). Climate change, ambient air pollution, and students' mental health. World journal of psychiatry, 14(2), 204–209. https://doi.org/10.5498/wjp.v14.i2.204
Yablonskiy, D. A., Ackerman, J. J., & Raichle, M. E. (2000). Coupling between changes in human brain temperature and oxidative metabolism during prolonged visual stimulation. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 97(13), 7603–7608. https://doi.org/10.1073/pnas.97.13.7603
Eco-ansiedade é um estado de agitação, inquietação ou ansiedade diante da crise climática. Este conceito, popularizado pela Associação Americana de Psicologia (APA) em 2017 em seu relatório Saúde Mental e Nosso Clima em Mudança
Li uma vez em uma noticia (não me recordo qual) que para frear os problemas causados pelo aquecimento global, seria necessário plantar em torno de 3 trilhões de árvores nativas (de suas regiões específicas desse mundo). É algo difícil, mas não seria impossível se todo mundo começasse a olhar para esse tema com mais atenção.
Mas de lá para cá vi mais árvores sendo cortadas do que o contrário, então provavelmente o aquele número aumentou…
Não gosto de ser pessimista (infelizmente sou), mas acho que vamos viver um Mad Max ou uma Duna mesmo.
As pessoas sabem o que devem fazer para diminuir os efeitos do aquecimento global, elas só não fazem. Reclamam do calor, as enchentes, das queimadas e do desmatamento mas sequer plantam uma árvore, colocam o lixo no lixo, faz compostagem, enfim..
Outra coisa, climatizar alguns espaços para que de fato o calor não prejudique ainda mais a saúde mental é sim uma alternativa, entretanto o uso desses equipamentos aumentam o aquecimento já que para a energia funcione ela precisa de eletricidade, que depende de água que depende de uma termoelétrica que é movida por combustíveis fósseis. As hidroelétricas não podem carregar sozinhas esse peso por que dependem da água da chuva, que são irregulares, então volta ao uso das termos. É meio que tampar o sol com a peneira.