O cisne negro e o poder do improvável
Como eventos aleatórios moldam nossas vidas, uma perspectiva filosófica para se proteger do inesperado
Imagine que você é um europeu no século XVIII. Você não sabe de muita coisa, seu conhecimento é baseado na em suas experiências, naquilo que você pode ver e experimentar por si mesmo, por isso algumas coisas são óbvias para você como o céu é azul, as plantas são verdes e os cisnes são brancos. Estas eram crenças inquestionáveis por serem absolutamente confirmadas por evidências empíricas. Mas quando os europeus chegaram no que conhecemos hoje como Austrália, eles se depararam com o que deveria ser impossível: um cisne negro. Talvez você não soubesse — ou sinceramente não se importasse— mas os cisnes negros existem e são da Austrália, o único lugar onde você poderá vê-los na natureza. Até ai nada demais. Entretanto, para Nassim Nicholas Taleb esse evento ilustra uma limitação grave no processo de aprendizado por meio de observações ou experiências e a fragilidade do conhecimento. Taleb argumenta que o inesperado tem um poder absurdo sobre o conhecimento e sobre nossa vida, e ele caracterizou e nomeou essa questão lógico-filosófica como: Evento Cisne Negro, onde uma única observação pode invalidar uma afirmação originada por um consenso muito bem fundamentado.
Taleb definiu o evento Cisne Negro com três atributos: Imprevisibilidade, Impacto extremo e Explicação retroativa. Esses atributos são necessários para delimitar o impacto desses eventos e compreender a magnitude de seus efeitos. Posteriormente explico a necessidade disso.
A Imprevisibilidade evidencia que não há como antecipá-lo com base nos dados anteriores. É algo tão inesperado que nem a possibilidade dele existir ou ocorrer era considerada. Não é a mera incerteza sobre um evento, é o agir consciente de que ele não existe. O Impacto extremo é o resultado dessa descoberta, não é apenas um acontecimento que pode ser ignorado, ele vira um marco, se torna uma referência, promove uma virada de chave no pensamento e na lógica. É uma mudança de paradigmas. Antes dele as coisas eram feitas de uma forma, mas tudo mudou, ele por si só já causa um grande impacto, e ainda é a gênese de muitas outras mudanças. Por fim, a Explicação retroativa afirma que nós seres humanos costumamos ser mais eficientes em explicar fatos que já ocorrem, em contrapartida, não somos tão bem sucedidos na hora de predizer acontecimentos, mesmo que tenhamos base empírica e conhecimento para tal, então quando um evento Cisne Negro acontece, geralmente corremos para explicá-lo. Como ele aconteceu? Quem estava por trás? O que mudou? Quais foram as causas? Quando isso acontece fica mais fácil identificar os fatores, as multidisciplinariedades, o empenho ou o descaso. O ponto é que pelo fato de o Evento Cisne Negro se tornar um marco, ele precisa de explicações, precisa ser compreendido pois é crucial para elucidar suas consequências posteriores. Com isso, Taleb critica modelos estatísticos tradicionais que subestimam a probabilidade e o impacto de eventos raros e propõe que devamos nos proteger contra o imprevisível, em vez de tentar prever com precisão.
E qual o motivo de definir critérios para algo assim? Como já explicado, o Evento Cisne Negro é uma mudança de paradigma, são eventos que tem potencial de mudar o rumo da história. Acontecimentos tão únicos que é possível delimitar um antes e um depois, pois ele muda a lógica vigente, as “regras do jogo’’. E se na vida há regras, existem exceções e existem conceções. Não é porque uma coisa é inesperada que ela necessariamente terá um alto impacto, e mesmo coisas que são muito impactantes naquele momento não causam grandes reviravoltas ou consequências evidentes ou duradouras significativas. Por vezes, algo era pouco provável de acontecer, mas estava previsto - mesmo que fosse difícil de acontecer, ou que foi surpreendente ter acontecido - não necessita de uma explicação complexa pois era uma das consequências possíveis. Isso diferencia o Evento Cisne Negro de uma exceção a regra vigente e a nossa necessidade perspectiva em relação a ele. A exceção é a regra do tolo.
Um exemplo do Evento Cisne Negro apresentado no livro foi o ataque do 11 de setembro. Segundo ele, se o risco fosse razoavelmente concebível no dia 10 de setembro, ele não teria acontecido. Se tal possibilidade fosse considerada digna de atenção, caças teriam voado em torno das torres gêmeas, os aviões teriam portas trancadas e à prova de balas e o ataque não teria acontecido, ponto final. Alguma outra coisa poderia ter acontecido. As consequências para geopolítica global foram indescritíveis. Esse evento mudou a aviação global, as politicas de segurança e defesa nacional, afetou culturalmente toda a percepção sobre uma das maiores religiões do Planeta e não é exagero dizer que até hoje pessoas sofrem consequências e tem as vidas impactadas pelo que aconteceu naquele dia. Outro evento que exemplifica esse evento foi a descoberta da penicilina. Alexander Fleming não estava procurando um antibiótico quando percebeu que um fungo (Penicillium) impedia o crescimento das bactérias. Na verdade sequer havia um consenso se aquilo era possível de uma maneira segura, e ele nem ao menos estava procurando criar algo com esse fim, segundo o próprio a descoberta não passou de um acidente, já que o mesmo havia deixado seu laboratório uma bagunça e as amostras forma contaminadas ao acaso e semanas depois ele as descobriu. Resultado? Revolucionou a medicina e salvou milhões de pessoas.
Quando Ivan Pavlov estava estudando a produção de saliva em cães expostos a diversos tipos de alimento, ele não tinha o objetivo de mudar para sempre a psicologia do comportamento descobrindo o papel do condicionamento, mas seu trabalho influenciou profundamente nomes como Watson e Skinner, e graças a ele toda uma corrente de estudo nasceu na psicologia. Antes do advento da psicanálise, a ideia de que existe um inconsciente que afeta o comportamento humano sequer era considerada, e atualmente a ideia de um inconsciente é muito popular e utilizada, mesmo por quem não tem relação direta com a psicologia ou a psicanálise. Por isso o desconhecido, ou até mesmo o imprevisível, tem mais poder transformador do que o conhecimento acumulado.
“O que você não sabe é mais relevante do que aquilo que você sabe.”
Durante a Segunda Guerra Mundial a aeronáutica dos EUA percebeu que precisava aplicar uma fuselagem extra em seus aviões para deixá-los mais protegidos contra os projéteis e a munição antiaérea. Sabendo da importância de avaliar corretamente onde deveriam aplicar esse reforça, contataram o Grupo de Pesquisa Estatística (SRG, na sigla em inglês). A lógica seria essa: analisariam a localização dos furos de bala nos aviões que voltavam do campo de batalha e por meio de correlações poderiam chegar a conclusão de que seria melhor blindar essas regiões, já que elas recebem mais tiros. Parecia razoável, porém o matemático húngaro Abraham Wald, membro do grupo, apontou que poderiam estar cometendo um erro pois, de acordo com ele, os dados se tratavam apenas dos aviões que retornavam à base, e nada se sabia sobre aqueles que eram derrubados. Ele chamou isso de viés de sobrevivência. Assumindo que os inimigos atiravam nos aviões mas não necessariamente em um parte específica, como asas, motor ou fuselagem, o que os dados indicavam eram quais haviam conseguiam sobreviver a essa distribuição aleatória de balas.

Dessa forma, ele concluiu que os aviões que levavam tiros na cabine do piloto ou no motor não retornavam, e por isso era nessas regiões que a blindagem extra deveria ser aplicada. Esse evento se tornou emblemático e ajuda a exemplificar como o que nós não sabemos, ou não estamos vendo, tem um impacto tão forte quanto o que sabemos.
Por essa razão, o conceito de evento Cisne Negro é tão interessante, pois nos mostra como somos sensíveis ao inesperado— e criar um balé incrível—. O inesperado é assustador pois ele vai contra o funcionamento da nossa mente. Estamos sempre buscando e estabelecendo padrões que nos ajudam a lidar e organizar nossa vida. Entretanto, a aleatoriedade vai de encontro a isso e muitas vezes coisas inesperadas acontecem sem ter uma lógica ou explicação. Pode ser que esses eventos caóticos sejam passageiros, eventualmente são esquecidos ou lembrados como meros infortúnios ou um causo para contar em conversas informais. Mas, e quando eles mudam tudo? E quando o impacto deles é forte demais para ser ignorado? E quando as consequências deles perduram? E quando eles mudam a sua própria concepção sobre o que é a vida e como vivê-la?
Nós tendemos a tratar o conhecimento como uma propriedade pessoal que deve ser protegida e defendida, especialmente aquele conhecimento, um tanto abstrato e vago, que não se explica muito mas está sempre sendo resumido como saber sobre a vida. É uma amalgama não muito clara de conhecimentos empíricos que supostamente guiam alguém para a forma ‘‘certa’’ de viver. Uma mistura de filosofia de bar com senso comum que dificilmente é delimitada em algo claro e evocada quando alguém quer acusar outra pessoa de não estar vivendo da ‘‘maneira correta’’, sendo ingênuo ou temerário em suas escolhas. Contudo, a vida não é óbvia, ela é imprevisível e muito inconveniente para nossos planos. Existem eventos que não são programados, não são esperados e ainda sim nos mudam completamente. São acontecimentos tão relevantes e marcantes que você consegue distinguir quem era você antes e depois dele.
‘‘Cheguei onde cheguei porque tudo que eu planejei deu errado’’
Ruben Alves
Nós subestimamos muito o poder da aleatoriedade em nossa vida. Não temos como prever uma série de eventos que nos atravessam e nos afetam de maneira positiva ou negativa. Em terapia, muitas pessoas buscam encontrar sentido para situações que lhe ocorreram, seja para numa tentativa de superá-las, tentando viver como se aquilo nunca tivesse acontecido, ou, sentindo constantemente o peso desses episódios, como se eles os tivesse destruído e não é possível seguir em frente. Não existe um método que seja perfeito para todos. Quando algo assim acontece na terapia é necessário um trabalho personalizado entre o psicólogo e o individuo. Via de regra, é desejável que a pessoa possa alcançar a autonomia e desenvolver suas forças para lidar com o que lhe aconteceu, nem sempre tudo pode ser superado, mas é possível ter uma vida para além do sofrimento. E de fato a aleatoriedade nem sempre será negativa. Existe espaço para resiliência, flexibilidade, adaptação e experimentação que é muito bem vinda para construção do nosso Eu e dos nossos objetivos. Todavia, um grau de imprevisibilidade também precisa estar no horizonte pois ele pode ser o combustível para mudanças e para transformação, pois além de tudo, objetivos podem mudar. Sonhos e aspirações podem ser abandonados ou remodelados e isso não é necessariamente ruim. Vamos mudando com o passar da vida, pode acontecer que aqueles sonhos não se encaixem mais no ideal que você busca; você pode notar que aquele objetivo não era seu, mas as expectativa de terceiros; podem ser resultado de amadurecimento; podem não ser mais representativos da pessoa que você se tornou ou a experiência pode ter demonstrado que aquilo que você tanto desejava, não era tão bom quanto parecia.
Por isso esse exercício é tão válido. Quais são os momentos marcantes, os eventos inesperados e que tiveram repercussões que você sente até os dias de hoje? Quais são os Cisnes Negros de sua história de vida? Eles podem ser negativos ou positivos, mas nunca insignificantes. Diante da frieza da aleatoriedade, ter opções abertas e abraçar a aleatoriedade de estar vivo, na medida do possível, é o que podemos fazer para nos proteger do improvável. É ter noção que nossos planos podem precisar de ajustes e mudanças, é não se frustrar pelo que não podemos mudar. Sorte — ou a falta dela— e acaso nos molda muito mais do que admitimos. O sofrimento pela incerteza é uma experiência universal por isso o acolhimento empático da dor leva ao crescimento. Segundo Victor Frankl, é possível encontrar sentido no que há de bom e de ruim em viver, mesmo que você não entenda as causas desses acontecimentos. E tais mudanças podem e vão ser assustadoras, mas o medo pode não evitar o sofrimento, pode impedir sua vontade de viver. Acreditar que a tristeza ou a felicidade são eternas é se tornar vulnerável as mudanças características de nossas vivências. Mesmo que nossas existências sejam profundamente impactados por eventos que não podemos controlar ainda é possível desenvolver a resiliência e flexibilidade para nunca estar totalmente vulnerável aos Cisnes Negros da vida.
Recomendo a leitura
Taleb trabalha seus conceitos mais profundamente e com nuances em diferentes áreas. É necessário sempre ter uma leitura crítica
Referências
Chow, R. (2021, June 3). Abraham Wald: A Statistical Hero - History of Data Science. History of Data Science. https://www.historyofdatasciencecom.translate.goog/abraham-wald-a-statistical-hero/?
Morgenstern, O. (1951). Abraham Wald, 1902-1950. Econometrica, 19(4), 361–367. https://doi.org/10.2307/1907462
Nassim Taleb, Schild, M., & Pina, M. (2008). A lógica do cisne negro : o impacto do altamente improvável. Bestseller.