Novos Cigarros para Crianças
Seriam as telas dos smartphones e tablets tão nocivos quanto os cigarros? E se forem, por que não nos escandalizamos com isso?
Um garoto de 2 anos de idade que fumava 40 cigarros por dia, se isso parece absurdo agora, imagine em 2010 quando as fotos de Ardi Rizal, a criança fumante indonésia, viralizou na internet e dominou a TV aberta mundialmente. Era motivo de choque e espanto a cena da criança casualmente fumando enquanto é observada por seus familiares, todavia, em um passado não tão recente a relação entre a infância e nicotina não era absurda ou causava espanto, seja por incentivos familiares ou midiáticos, fumar na infância era comum, numa época em que não se tinham pleno conhecimento dos males do tabaco, ou até se sabia mas o lucro era mais importante, a saúde de uma faixa etária da sociedade foi severamente comprometida e seus danos só puderam ser mensurados em retrospecto. De forma análoga, atualmente tem-se descoberto cada vez mais o impacto negativo que o uso excessivo de telas têm no desenvolvimento infantil e também no de adultos. Recentemente o Senado australiano aprovou uma proibição de redes sociais para crianças e adolescentes menores de 16 anos e eu defendo que, em 50 anos crianças com acesso a telas será tão absurdo quanto crianças fumantes.
Para começar, a dependência das crianças em relação às telas já é uma preocupação de saúde pública, pois pode comprometer o desenvolvimento cognitivo, linguístico e sócio emocional. A maturação biológica não é gradual e constante, nosso cérebro vai se adaptando ao ambiente em que estamos inseridos, essa adaptação é sempre contextual e pode variar por fatores ecológicos, econômicos ou culturais. Contudo existe um determinado padrão de habilidades, competências e desempenho esperado com relação a sexo, idade e escolaridade levando sempre em consideração as potencialidades generalizadas para aquele individuo — por exemplo, é esperado que com doze meses de vida um bebê já comece a emitir algumas palavras, mas é plenamente aceitável que isso ocorra um pouco antes ou depois já quem toda criança tem seu próprio ritmo de aprendizado, entretanto, caso um criança com mais de vinte meses ainda não consiga emitir palavras simples, um atraso no desenvolvimento dessa habilidade passa a ser considerado – Muito se fala da grande capacidade de adaptação do nosso cérebro, a neuroplasticidade, no entanto essa adaptação não é intrinsecamente positiva, visto que, nosso cérebro pode se ajustar para ser eficiente em um comportamento disfuncional.
A dopamina é um neurotransmissor que está ligado a nossa volição, motivação, quanto mais estimulante é um comportamento, mais motivados somos a repeti-lo, e não a nada de errado nisso, mas isso também significa que nosso cérebro tende sempre a buscar cada vez mais os comportamentos que nos dão mais estímulo dopaminérgico, mesmo que esses comportamentos não sejam benéficos a nossa saúde, esse é o princípio dos comportamentos adictivos, vícios ou compulsões. Dessa forma, o cérebro se adequou a ser disfuncional, e com o tempo e a repetição fica cada vez mais difícil remediar essa disfunção, em outras palavras, o cérebro aprendeu a funcionar assim. Graças aos algoritmos, a compulsividade pelas telas é estimulada com ciclos de recompensas frequentes e rápidos, o cérebro passa a interpretar toda e qualquer mensagem, curtida e comentário como uma recompensa. A dopamina surge no centro de prazer do cérebro, instaurando um looping infinito, e é muito difícil resistir, a linha da distração para o vício é muito tênue, pois é um esforço, literalmente, industrial para roubar a sua atenção.
Muito se fala da grande capacidade de adaptação do nosso cérebro, a neuroplasticidade, no entanto essa adaptação não é intrinsecamente positiva, visto que, nosso cérebro pode se ajustar para ser eficiente em um comportamento disfuncional.
Não a toa, o uso prolongado de dispositivos reduz a quantidade e a qualidade das interações entre crianças e cuidadores, afetando diretamente o desenvolvimento da linguagem já que a interação é primordial para o desenvolvimento da fala, mas isso vai além, compromete a atenção, memória, cognição, raciocínio, uma pessoa pessoa normal pode ter todas a sua habilidades cognitivas afetadas e comprometendo seu desenvolvimento, especialmente porque a maturação humana vai além da infância, por exemplo, um área do nosso cérebro chamada de córtex pré-frontal, só termina de se desenvolver por volta dos vinte e cinco anos de idade, sendo essencial para a atenção, a memória funcional, a tomada de decisão, o comportamento social e a personalidade.
Agora imagine que uma criança é exposta ao cigarro desde muito nova, não necessariamente como o caso do Ardi Rizal, quais seriam os efeitos na sua saúde de curto, médio e longo prazo? bem você não precisa, depois de tantos anos de pesquisa na área médica existe uma relação de causalidade com: aumento das alergias, tosse, coriza, náuseas, dor de cabeça, crises de asma, bronquite, rinite e infecções de vias aéreas. A longo prazo, essa exposição pode resultar em condições como otite, laringite, amigdalite, bronquite, pneumonia e agravamento de crises asmáticas, além de aumentar o risco de câncer e doenças cardíacas. O médico Pérsio Roxo Júnior, chefe da Divisão de Imunologia e Alergias Pediátricas do Departamento de Pediatria e Puericultura da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, diz que “Crianças que convivem com pessoas que fumam e inalam a fumaça tóxica podem ter a frequência cardíaca mais acelerada, podendo ficar mais agitadas.” Essa consequência comportamental é corroborada pela psicóloga do Hospital das Clínicas da FMRP, Renata Panico Gorayeb, especialista em Psicologia da Saúde, Desenvolvimento Infantil e Dinâmica Familiar, conviver com fumantes pode manifestar problemas de comportamento e desenvolvimento cognitivo nas crianças, elas podem crescer como adultos mais vulneráveis emocionalmente e com tendencias a adquirir novos vícios.
em 50 anos crianças com acesso a telas será tão absurdo quanto crianças fumantes.
Parece assustador, mas não é absurdo dizer que para o uso excessivo de telas pode ter efeitos tão nocivos para o desenvolvimento quanto o cigarro uma pessoa é exposta desde muito jovem a, feeds e algoritmos ladrões de esforço cognitivo, imagine que todos esses anos comprometeram a funções cognitivas e potencial que ela poderia ter tido. Crianças que passam muito tempo usando telas apresentam comportamentos como: birras, atrasos de fala, dificuldades de comunicação, dificuldades de reconhecer emoções, atitudes violentas, inabilidade social, todos sintomas típicos do autismo, logicamente, não estou dizendo que telas causam autismo, apenas que existem evidências que muitos comportamentos considerados sintomáticos do TEA, como a dificuldade de socialização e a tendência a de um comportamento repetitivo e sem muita função podem ser fatores de confusão e levar a um falso diagnóstico, o que pode levar uma pessoa a passar por terapias e tratamentos desnecessários, ou passar por adaptações de rotina que ela não precisaria. O ponto é que, não apenas para crianças, mas para qualquer faixa etária existe um determinado risco a ser considerado, um estudo da Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos EUA, acompanhou um grupo de indivíduos um pouco mais velhos, na pré-adolescência, que foram enviados a um acampamento, eles não tiveram contato nenhum com as telas durante a viagem e os pesquisadores notaram uma melhora na capacidade de reconhecer emoções e usar recursos de comunicação nas interações sociais deles, em comparação a uma turma de jovens que não mudou os hábitos e continuou a ver TV e a mexer no celular, um dos pesquisadores conta que a simples mudança no regime de telas causa uma melhora significativa pois, quem apresentava um comportamento muito próximo ao autismo volta mais organizada, menos irritada, fazendo contato social e com maior atenção.
existem evidências que muitos comportamentos considerados sintomáticos do TEA, […] podem ser fatores de confusão e levar a um falso diagnóstico, o que pode levar uma pessoa a passar por terapias e tratamentos desnecessários, ou passar por adaptações de rotina que ela não precisaria.
O uso de telas e redes sociais não é potencialmente viciante, é comprovadamente viciante, não é o caso de uma geração de pessoas integradas à tecnologia e dominando suas possibilidades, é uma relação tóxica e parasitária que poda o potencial humano. Mesmo que você não seja mais uma criança ou um adolescente não está a salvo dos potenciais malefícios que podem suscitar descontroles emocionais e sensoriais. Na pesquisa da Opinion Box 8 a cada 10 usuários usa o Tik Tok pelo menos uma vez por dia, 34% dos usuários abre várias vezes ao dia e até 11% dos usuários tem o app aberto o dia todo. O site EletronicsHub realizou uma pesquisa internacional sobre o comportamento digital no mundo, Digital 2023: Global overview Report, de acordo com o levantamento de Kemp (2023), em média o brasileiro passa 9 horas e 32 minutos por dia utilizando dispositivos eletrônicos, a média mundial é de 6 horas e 37 minutos, esse dado coloca o Brasil em segundo lugar no ranking de países com maior tempo de uso de telas. Ainda de acordo com a pesquisa, 84,3% da população brasileira tem acesso a internet. Um estudo de 2022 teve o intuito de investigar como o uso do smartphone e das redes sociais afeta a atenção, memória e ansiedade dos estudantes universitários. A pesquisa apontou uma grande quantidade de estudos que conectam o uso dessas tecnologias à ansiedade, nesse sentido, a nomofobia, ou o medo de ficar sem o smartphone, parece estar intimamente ligada a essa sensação.
Por fim, pesquisas nesse campo já são conclusivas o suficiente para definir questões de saúde pública, como proibição de menores terem contas em redes sociais, passos pequenos é verdade, mas vale lembrar que as telas são a superfície de contato entre nós e uma indústria Trilionária, e pode ser que para muitas pessoas isso pareça naturalizado e sem volta, mas um dia o cigarro também foi assim, a mudança pode ser estrutural ou pela psicoeducação, mas essa nefasta relação pode ser superada e uma criança presa frente a um tablet ou smartphone irá ser tão chocante e absurdo quanto a mesma com um cigarro na boca.
Vi seu comentário no meu perfil e vim xeretar um pouco as novidades o seu. O título dessa postagem me intrigou e acabei lendo tudo.
Eu nunca tinha feito essa associação, mas você acertou em cheio na comparação entre o cigarro e o vicio em smartphones. Lembro quando eu era criança, meus pais me alertavam sempre sobre os perigos da internet e como eu deveria ter cuidado. De uns anos para cá, tudo mudou, mas a internet continua sendo perigosa, aliás bem mais do que antes (afinal, assim como você, comecei com aquela internet velha que só podíamos usar depois das 00:00h haha). Apesar disso, não vejo muita preocupação por parte dos pais hoje em dia. O uso de smartphones está muito normalizado, como se fosse natural… Já vi crianças que nem sabiam falar direito, mas já estavam nas telas, e todo mundo em volta achando normal. Existe uma razão para os donos das big techs colocarem seus filhos em escolas que proíbem o uso de telas, eles sabem que não é bom para o desenvolvimento de uma criança… mas parece que as pessoas comuns ignoram isso, fecham seus olhos. Não sei como será no futuro, mas tenho certeza que olharemos para crianças com telas com a mesma estranheza que vemos essa fotos de crianças fumando, pois é de fato estranho.
Que importante esse texto!