Como narcisistas sentem empatia
A análise de um estudo que nos trouxe novas informações sobre o transtorno de personalidade narcisista e poderá mudar seus conceitos sobre o que é empatia
Há um tempo atrás o narcisismo ficou muito popular na internet, e isso é tão bom quanto é ruim, pois mesmo que seja importante conscientizar as pessoas sobre o que é o Transtorno de Personalidade Narcisista, muitas discussões nasceram com base em achismos ou informações sensacionalistas. Relatos anedóticos ou a banalização do termo podem causar muita confusão e até levar a conclusões precipitadas sobre o TPN. Não é incomum, por exemplo, associarem o narcisismo a uma incapacidade de sentir empatia, o que aproxima narcisistas do modelo popular do que seria um “psicopata”. Contudo, isso não é necessariamente verdade. Narcisistas sentem sim empatia, mas de uma forma diferente do que convencionou-se a chamar de empatia atualmente.
O estudo “The dark side of empathy in narcissistic personality disorder”, publicado em 2023 na revista Frontiers foi uma super revisão de tudo que foi pesquisado ao longo de décadas sobre narcisismo e empatia, e a descoberta foi que sim, narcisista são sim capazes de sentir empatia. A empatia é descrita como um construto emocional e cognitivo influenciado pela interação entre características biológicas e ambientais. É a capacidade de compreender as emoções de outra pessoa e de se colocar no lugar do outro se permitindo sentir o que aquela pessoa está sentindo ou compartilhando com ela os mesmos sentimentos. Por isso, ela está muito ligada à capacidade de autopercepção e a consciência da distinção entre o eu e as outras pessoas, chamada de “regulação emocional”. Essa capacidade envolve um autocontrole comportamental e a adequação ao ambiente social. Em aspectos neuropsicológicos ela envolve:
ínsula anterior (AI);
córtex cingulado anterior (ACC) e
regiões específicas do córtex pré-frontal medial.
Com base em análises de comportamento, fisiologia e relações sociais de pessoas narcisistas, os cientistas perceberam que eles eram sim capazes de sentir empatia. Mas como isso é possível? Como pessoas capazes de cometer atos cruéis e criminosos sem motivo poderiam sentir empatia? Basicamente porque empatia não é uma coisa só. Ela pode ser dividida em duas: empatia cognitiva e afetiva.
A empatia cognitiva é a capacidade de entender as emoções dos outros e a empatia afetiva é o que nos permite sentir as emoções dos outros. Em uma pessoa neurotípica, isso é tão comum que convencionamos a tratar ambas como se fossem a mesma coisa, mas não são, e pessoas com Transtorno de Personalidade Narcisista são a prova disso. Até podem entender o que são as emoções e identificar o que outros estão sentindo, mas são incapazes de serem afetadas e sentirem o mesmo. Isso explica o motivo de pessoas narcisistas terem tantos comportamentos manipuladores, pois ler as emoções dos outros pode ser útil para atingir objetivos pessoais. O narcisismo é multifatorial, com vários aspectos disfuncionais— como exibicionismo, autossuficiência, superioridade e vaidade— por isso tendem a usar suas habilidades de reconhecimento de emoções para manipular e procurar reconhecer nos outros emoções negativas, buscando vulnerabilidades para explorar e ter vantagem.
É importante destacar aqui que essa capacidade de ler emoções de outras pessoas não é necessariamente uma supercapacidade dos narcisistas. Não é como se eles fossem naturalmente profissionais em ler as emoções (como um super poder). Eles têm tanta capacidade quanto uma pessoa neurotípica, mas acontece que essa capacidade — empatia cognitiva— é uma habilidade que nosso cérebro possui, como a memória, a linguagem, a atenção ou a criatividade e, como toda habilidade cognitiva, ela pode ser treinada e aprimorada. Esse aprimoramento de habilidades cognitivas não é necessariamente ligado à uma esforço consciente e deliberado com o foco em ficar melhor, mas na maioria das vezes está ligado à recorrência do uso dessa habilidade. Por exemplo: uma pessoa que é acostumada a fazer trabalhos manuais e criativos tende a ter uma capacidade maior de visualização e planejamento de seus objetivos ou do resultado final esperado. Uma pessoa que é acostumada a falar em público tende a ter mais desenvoltura em sua oratória. De mesmo modo, desempenho nas habilidades cognitivas são contextuais, então narcisistas não são espontaneamente mestres em ler emoções, mas por causa de sua condição eles tendem a querer sempre manipular ou ter controle sobre alguém, e saber como essa pessoa está se sentindo é muito útil para esse fim. Por isso, podemos dizer que a sua condição psiquiátrica os leva a praticar a habilidade de ler as pessoas e de fato alguns podem se tornar bem eficientes nisso, embora não seja uma regra para todos.
Também é necessário uma distinção entre os comportamentos narcisistas. O narcisismo grandioso é caracterizado por arrogância, um senso distorcido de autoestima e superestimação de suas próprias capacidades, onde o indivíduo está sempre expressando sua superioridade e buscando o domínio sobre os outros. Já o que podemos categorizar como narcisismo vulnerável é caracterizado pela hipersensibilidade e pela dependência de outros, o que reflete uma autoestima frágil, que é regulada por estratégias como a diminuição da importância das conexões com outras pessoas. Em ambas a empatia afetiva é disfuncional, não completamente ausente, mas sim dissociada, e essa dissociação pode contribuir para comportamentos manipuladores e exploratórios, pois a compreensão das emoções alheias pode ser utilizada de forma egoísta. As pessoas afetadas pelo TPN descrevem-se como superiores, mas, ao mesmo tempo, dependem e manipulam os outros para ganhar visibilidade e admiração, o que é evidência de um ego frágil e uma autoestima baixa, por isso pessoas com alto nível de narcisismo respondem agressivamente quando se sentem desafiadas, presumivelmente para recuperar a autoestima e o domínio sobre os outros. Narcisistas podem tentar demonstrar distanciamento afetivo quando enfrentam críticas e desaprovação de pessoas, como uma forma de tentar se proteger, especialmente se a pessoa em questão seja de alguma forma vista como útil ou importante para ela. Além da agressividade e manipulação, a incapacidade de sentir empatia afetiva pode explicar a impulsividade e comportamentos que seja imorais e antiéticos pois, esse déficit explica a desregulação comportamental e a dificuldade de se adequar aos ambientes e situações sociais além de “validar” agressão e violência como uma resposta a ameaças percebidas.
Analisar esse estudo é valioso pois nos permite visualizar o quanto a mente e o comportamento humano é complexo. A empatia muitas vezes é ligada a sentimentos “positivos” como compaixão e assertividade, mas existe todo um espectro do comportamento humano que é negado nesse pressuposto: a empatia não é intrinsecamente boa. A reação empática está relacionada com o sentimento que é comunicado por uma pessoa ou por uma situação. Existe empatia quando uma notícia sobre injustiça nos dá ódio. Quando um político discursa e usa casos policiais para incitar o ódio contra determinado grupo de pessoas a empatia de seu público foi modulada. Existe um grau de empatia envolvida quando um motorista presencia um assalto na sua frente e joga o carro na direção do assaltante. Enfim, a empatia é essa capacidade humana que nos coloca no lugar de outras pessoas, seja pelo amor, seja pelo ódio, que apressa o cuidado ou que justifica a violência, seja para o bem ou mal. Esse artigo mostra uma coisa que é bem comum na ciência, mas às vezes parece contra intuitivo no senso comum: a ausência ensina tanto quanto a sua presença. Em outras palavras, é curioso que quem nos ajudou tanto a entender sobre a empatia, seja justamente quem não a tem.
Referências
di Giacomo, E., Andreini, E., Lorusso, O., & Clerici, M. (2023). The dark side of empathy in narcissistic personality disorder. Frontiers in psychiatry, 14, 1074558. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2023.1074558
Sensacional! Diferente de “toda” a internet, eu não conheço ninguém Narcisista haha, mas li até o final, pois informações são sempre úteis.
Parabéns pela postagem!
Seus textos são sempre tão gostosos de ler! Você consegue traduzir esses conceitos complexos em explicações fáceis de entender. Esse post sobre narcisismo muito me interessa. Como sempre, excelente 😊👏👏.