Chimpanzés, Bonobos e a Natureza Humana
Como o processo evolutivo de um grupo de macacos separados pelo Rio Congo nos ajuda a debater a ética da vida em sociedade
Antes do Rio Congo se tornar um colossal corpo d´água com impressionantes 220 metros de profundidade, 4.374 quilômetros de extensão e a distância entre suas margens que pode chegar até 3.200 metros, ele não passava de um córrego. Nas proximidades dele vivia uma população de macacos que tinha um farto acesso a comida que estava no solo da floresta e no alto das árvores. Então, córrego tornou-se o Rio, ficando mais largo e mais profundo, ocasionalmente dividindo a população de macacos entre o norte e o sul do rio que, embora tivessem o mesmo tipo de macacos, agora seriam obrigados a viver em lugares diferentes. Mas, quão diferentes? Na região norte não havia tanta comida no chão da floresta e, junto com os macacos, moravam os Gorilas do Rio Cross, que eram bem maiores e territorialistas, obrigando os macacos a disputar a pouca comida que havia na copa das árvores. Enquanto isso, na região sul, não havia gorilas e os macacos podiam se alimentar fartamente da comida que havia no solo da floresta. Para a maioria dos pesquisadores, essas duas diferenças foram o bastante para o surgimento de duas novas espécies: uma extremamente agressiva e outra super pacífica.
Como isso foi possível? Um macaco ao norte do rio teria poucas opções de plantas terrestres para comer e ainda teria que disputá-las com os Gorilas grandes, fortes e raivosos, então a melhor opção era subir em árvores para conseguir comida. Se o macaco fosse mais agressivo do que os outros macacos do norte, provavelmente conseguiria mais comida e, dessa forma, não apenas teria mais chances de sobreviver como teria mais oportunidades de conseguir se reproduzir, ou seja, um macaco pacífico vivendo no norte do rio provavelmente conseguiria menos comida e menos chances de acasalar. Porém, ao sul do rio, não existem gorilas para fugir e há plantas à vontade, logo não existe motivo para ser agressivo como outros macacos, pelo contrário, em um lugar onde não há razão para brigar por alimentos, ser um macaco agressivo poderia afastar outros macacos e, tornando-se mais solitário, se tornaria um alvo mais fácil para predadores e com diminuiria suas chances de acasalar, ou seja, um macaco pacífico na terra ao sul teria mais chance de ser aceito no grupo, aumentando suas chances de sobreviver e de se reproduzir. Então, após centenas de anos e milhares de gerações a evolução e a genética fizeram seu trabalho e, através dessas variações de comportamento, surgiram essas novas espécies: o norte do Rio Congo ficou lotado de macacos violentos conhecidos como Chimpanzés e, no sul do rio moram os símios tranquilos conhecidos por resolver seus problemas com sexo ao invés de violência, os Bonobos. O ponto é: ainda não é possível bater o martelo sobre essa transformação. O que teve mais impacto: os gorilas ou a vegetação? Quais outros fatores contribuíram para essas mudanças? O único fato é que quando o Rio Congo aumentou o destino daqueles macacos foi determinado. Mas o que isso tudo tem haver com a natureza humana?
Do que eu falo quando cito a natureza humana? A natureza humana é o conjunto de características intrínsecas dos seres humanos que explicam sua maneira de pensar, agir e sentir, definindo seu comportamento e moralidade. Conceito extremamente discutido na filosofia, antropologia, sociologia, mas talvez a discussão mais popular do que o choque entre os conceitos diametralmente opostos expressos em suas célebres frases:
O homem é o lobo do homem. Thomas Hobbes
O homem nasce bom, a sociedade o corrompe. Jean-Jacques Rousseau
A grande discussão é: o homem é naturalmente bom ou é naturalmente mal? E aqui eu defendo que precisamos abandonar esse dualismo maniqueísta o quanto antes. Existem inúmeros fatores que influenciam na construção do Ser e Psiquê humana, como genética, epigenética, contextual, cultural e social, e são tão amplamente discutidos que simplificar a esse nível dual hoje em dia é quase infantil. Não há uma essência humana dada previamente, mas sim um horizonte de possibilidades de realização. Mas o que os Chimpanzés e Bonobos tem haver com isso?
Esses macacos passaram por um série de pressões ambientais e geográficas que os obrigaram a evoluir e se adaptar ao ambiente para que pudessem sobreviver. Naquela população havia toda a sorte de macacos com diferentes potenciais e possibilidades, e é impossível saber como essa espécie seria se o Rio Congo não tivesse se tornado o que é hoje. O fato é que o ambiente os moldou nos símios que existem hoje, tanto os do norte quanto os do sul, e quando eu digo ambiente não me limito ao que está externo a nós, mas o que está no nosso interior também. De fato você não pediu para nascer, você não escolheu quem eram seus pais, seus avós e nem tudo que você herdou geneticamente das milhares de gerações que te antecederam. Você nem ao menos escolheu ser um humano, com todas as nossas competências e limitações, como a biologia sobre a qual você não tem controle algum, interagindo com o ambiente sobre o qual você não tem controle algum, fez de você o que você é. Somos nossa sorte biológica e ambiental cumulativa, sobre a qual não temos controle, que nos trouxe a este ou a qualquer outro momento. Tudo isso que lhe compõe está nas suas mãos como pura possibilidade quando percebemos que estamos condenados a sermos livres.
Como a biologia sobre a qual você não tem controle algum, interagindo com o ambiente sobre o qual você não tem controle algum, fez de você o que você é.
Isso nos permite entender uma outra coisa muito importante: quem defende a natureza humana quer ganhar vantagem através dela. Muitas vezes sob o discurso dessa natureza inata do ser humano, seja ela boa ou má, se defende e desenham parâmetros dentro de instituições sociais para dobrar o humano à sua vontade e àquilo que ela espera dele, pode ser no trabalho, no meio acadêmico, no meio religioso ou na sua casa e família. Não é à toa que existem estereótipos sobre papéis, classes ou atribuições sociais, e não é por acaso que existem padrões que se esperam de um homem ou mulher, de um professor e um policial, de um interiorano e um metropolitano e por aí vai. Você é aquilo que o seu ambiente, interno e externo, exigem que você seja, e se você não se adapta você foge ou sucumbe, e isso não é de todo ruim uma vez que existem lugares que se esforçam para tirar o pior de nós e o ideal é que consigamos identificar e nos desvencilhar desses ambientes e, mesmo que eles de fato tenham êxito em exprimir nosso pior lado, isso de forma alguma nos define.
Você é aquilo que o seu ambiente, interno e externo, exige que você seja, se você não se adapta você foge ou sucumbe, isso não é de todo ruim[..]
Tzvetan Todorov, filósofo e linguista búlgaro, em seu trabalho “Diante do extremo” traz relatos de sobreviventes de campos de concentração onde eles, os sobreviventes, trazem a percepção de que se tornaram pessoas ruins, perderam completamente a empatia e se tornaram egoístas. Se associarmos esse tipo de relato a outros casos conhecidos como o experimento de aprisionamento de Stanford, onde foi realizada uma simulação de prisão em 1971 na qual estudantes universitários foram divididos em grupos de guardas e prisioneiros, resultando em um rápido declínio moral dos participantes, diante desses relatos a conclusão seria: a natureza humana é terrível. Porém Todorov traz em seu trabalho que, esses mesmos homens na sua luta por sobrevivência exerceram sua empatia mutuamente, senso de grupo e valores como amizade e companheirismo, algo reforçado também por Viktor Emil Frankl um neuropsiquiatra austríaco, fundador da Logoterapia e sobrevivente do holocausto que conta que mesmo naquele ambiente foi capaz de encontrar um sentido na sua vida cercada de tantos horrores. Daí vem a indagação: por que usamos situações absurdas para definir que a partir delas a natureza humana seria revelada? Se o sistema é construído para forçar o pior naquelas pessoas, por que nos surpreendemos quando ele aparece?
Não é sob tortura que o ser humano revela sua verdadeira identidade. De tanto suprimir os ingredientes habituais da vida humana em sociedade, cria-se uma situação inteiramente artificial, que nada mais nos informa a não ser sobre ela mesma. Tzvetan Todorov, Diante do Extremo. Pág: 47
Da mesma maneira que, alguém abastado e guiado desde cedo por um forte sistema de valores e lições de ética pode cometer atos violentos e horrendos por motivos mesquinhos e torpes, alguém que vem de um ambiente decadente e violento pode desenvolver um senso ético de empatia e solidariedade, mas ambos só poderão exercer plenamente esses modos de vida em ambientes onde essa escolha é estimulada e valorizada e muitas vezes esses locais não são óbvios nem evidentemente demarcados. Digo isso pois sei que ao dizer que, salvo por uma coação extrema, os seres humanos são levados, entre outras coisas, a se comunicar entre si, a se entreajudar e agir de forma ética, pode soar como um otimismo barato. A preservação da vida é um valor essencial do ser humano juntamente com a busca por uma melhoria de seu bem-estar, e fora de uma situação extrema, ambas são equivalentes e buscar potencializá-las dentro de seu ambiente diz mais sobre o aquele humano e seu contexto do que sobre uma natureza inata e generalizada da humanidade como um todo. Por fim, não devemos nos enganar que o bem e a ética reinam em toda parte, mas a decisão de considerar o nosso mundo feio e ruim tornará o nosso mundo feio e ruim, resta nos entregarmos à necessária tarefa de assumir a responsabilidade pela construção da nossa personalidade pautada na coerência de nossas escolhas e ações.
Achei esse texto muito interessante, e me recordei da quantidade de pessoas que já vi defendendo “a natureza do homem (espécie)” sempre estando relacionada à algum comportamento negativo, para validar este mesmo comportamento e torná-lo mais aceitável. Incrível como nunca me dei conta disso antes.
Mas, mudando de assunto para o mesmo. Fiquei pensando em algo… Sempre que tenho fome fico com uma raiva desproporcional (como se o mundo tivesse culpa do meu estômago estar vazio). Será que isso é uma resposta evolutiva da nossa espécie, uma forma do nosso corpo nos fazer ir atrás do nosso próprio alimento, ou é mais uma forma que usamos de validar um comportamento ruim com sob a desculpa da tal “natureza humana”?